Author: Eduardo de Carvalho Becerra
02/12/22
No último dia 19 de outubro, por 7 votos a 6, o STJ (Superior Tribunal de Justiça), por voto condutor da ministra relatora Nancy Andrighi, decidiu rever a tese que havia então sido firmada quando do enfrentamento do Tema 677, há menos de uma década. Naquela ocasião, ficou assentado que o depósito judicial, independentemente de sua natureza, extinguia a obrigação do devedor nos limites da quantia depositada. Agora o entendimento é o de que o depósito a título de garantia não isenta o devedor dos consectários da mora.
Embora o acórdão paradigma não tenha sido ainda disponibilizado, na sessão de julgamento foi possível observar uma preocupação com a situação do credor. Na visão da corrente vencedora, não seria justo que, ao final de uma longa discussão aventada pelo devedor, o credor ficasse sem receber os encargos moratórios de seu crédito meramente em função da realização de um depósito judicial anos antes e que sequer estava na sua esfera de disponibilidade patrimonial. O mero depósito judicial em um conta vinculada ao juízo nada diz do ponto de vista da satisfação do credor e, portanto, não seria possível liberar o devedor dos encargos moratórios.
Sem dúvidas, o raciocínio da corrente vencedora pareceria, em uma primeira vista, estar mais alinhado à efetividade da tutela jurisdicional, não fosse o fato de que ele, implicitamente, parte de uma premissa incerta ou, quando menos, discutível, a saber: os depósitos que até então eram feitos em garantia continuarão sendo normalmente feitos, mesmo com a ciência, pelo devedor, de que agora tal providência não estancará a incidência dos encargos moratórios.
De fato, fosse esse o caso, não haveria dúvidas de que a solução engendrada seria mesmo a mais adequada, pois o credor seria recompensado pela demora ocorrida na sua satisfação. Mas e se o novo entendimento, no lugar de fazer com que o credor, além de ter uma garantia, ainda receba o crédito com encargos moratórios ao final, na verdade causar a diminuição do oferecimento de garantias nas execuções? Nesse caso, no lugar de uma melhora na situação do credor, o mote para a revisão do Tema 677, teríamos uma piora. Afinal, antes, com a execução garantida, ao menos ele teria a segurança de que seria satisfeito ao final, ainda que sem os encargos moratórios. Agora, se for possível que o novo entendimento desestimule o oferecimento de garantias nos autos, nem a certeza (ou alta probabilidade) de satisfação haveria e ele poderia entrar para a enorme estatística dos credores insatisfeitos e descrentes com a efetividade da tutela jurisdicional.
Seria, como em muitos casos da nossa história, mais um exemplo de como os resultados podem ser opostos às intenções. Então, como podemos determinar qual desses possíveis cenários, de melhora ou piora da situação jurídica do credor, efetivamente prevalecerá diante do novo entendimento do STJ? Aqui se abriria um vasto campo de análise econômica sobre o tema, a qual que se presta, justamente, a indicar quais são os incentivos processuais determinados por normas jurídicas (ou novas formas de aplicá-las, a depender do ângulo de análise) e os respectivos comportamentos adotados.
Naturalmente, a situação concreta exigiria estudo aprofundado e perpassaria pela identificação das razões determinantes pelas quais os agentes econômicos optam por oferecer garantias nos autos. Antes da revisão do Tema 677, o depósito em garantia apresentava duas grandes contrapartidas ao devedor: a possibilidade de pleitear o efeito suspensivo em eventual impugnação ou embargos à execução, e a estancagem da incidência dos encargos moratórios. Essa última contrapartida acabou de ser retirada pelo STJ, restando saber se a primeira delas será suficiente para fazer com que os agentes econômicos continuem oferecendo as garantias ou se preferirão enfrentar a execução. Por esse último caminho, haveria não só a perspectiva de se defender incidentalmente de eventuais constrições, como a possibilidade de adoção de todas as conhecidas manobras (algumas extraprocessuais) para frustrar a satisfação do credor ou protelar o feito, inclusive porque tais expedientes tenderiam, quando menos, a colocar o devedor em uma posição de negociar alguma saída autocompositiva que lhe fosse vantajosa, com deságio em relação ao valor executado.
Assim, querer assumir, sem maiores reflexões, como parece ter feito o ministro Og Fernandes, que a contrapartida buscada pelo devedor ao realizar o depósito judicial em garantia é a de concessão do efeito suspensivo, parece ser uma ingenuidade. Não parece ser possível afirmar que os depósitos judiciais são feitos pelo devedor exclusivamente na perspectiva de obtenção de eventual efeito suspensivo. Fosse assim e não se explicaria a postura que não raro se vê do depósito integral do valor nos autos, sem oposição ao imediato levantamento do numerário pelo credor, apenas na perspectiva de continuar discutindo e de ter um direito à restituição, caso o devedor ganhe a discussão. Nessa hipótese, o devedor, assumidamente, sequer pleiteou o efeito suspensivo, na medida em que não se opôs à imediata satisfação do credor, e mesmo assim fez o depósito judicial com vistas à obtenção do outro feito — a estancagem dos encargos moratórios. A propósito, não se sabe ao certo como e se o acórdão paradigma se debruçou sobre essa outra hipótese em particular, que em muito se distancia do simples depósito para fins de garantia.
Seja como for, a importância que a ausência de encargos moratórios tinha na tomada de decisão do agente econômico no oferecimento de alguma garantia deveria, quando menos, entrar nessa análise de revisão do Tema 677. Maior efetividade da tutela jurisdicional é o que todos queremos. A questão são os caminhos que concretamente podem levar a ela ou nos afastar dela. E a revisão do Tema 677 é um bom exemplo desse dilema.
Author: Eduardo de Carvalho Becerra