Author: Vinicius Conga Lima e Matheus Leonidas Maciel
20/01/25
Nos últimos anos, o Brasil vem experimentando um crescimento desenfreado da oferta on-line de jogos tradicionalmente considerados ilícitos, seja por proibição, seja por falta de permissão no ordenamento jurídico. Nos termos do artigo 50 do Decreto-Lei nº 3.688/41, constitui contravenção penal a conduta de estabelecer ou explorar jogo de azar em lugar público ou acessível ao público, mediante o pagamento de entrada ou sem ele; sendo considerados jogos de azar aqueles em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte, as apostas sobre corridas de cavalos fora de hipódromo ou de local onde sejam autorizadas e as apostas sobre qualquer outra competição esportiva, nos termos das alíneas do §3º do mesmo dispositivo. Daí o fundamento legal da tradicional proibição do jogo do bicho, bingo, caça-níqueis etc.
Na era digital, os jogos de azar ganham uma nova roupagem e passam a se apresentar como cassinos on-line, na figura do “tigrinho”, e como apostas esportivas, popularizadas pelas “bets”, impulsionados pela atratividade das telas, oferta ininterrupta em dispositivos móveis e pela facilidade das transferências monetárias eletrônicas e instantâneas. Ocorre que o artigo 29 da Lei nº 13.756/18 criou a modalidade de loteria denominada de aposta de quota fixa, consistente em sistema de apostas relativas a eventos reais ou virtuais em que é definido, no momento da efetivação da aposta, quanto o apostador pode ganhar em caso de acerto do prognóstico, conforme §1º do referido dispositivo.
Aos poucos, houve, em grande medida, um esvaziamento do tipo previsto no artigo 50 da Lei das Contravenções Penais. Num primeiro momento, o legislador tipifica a conduta de promover apostas esportivas; num segundo momento, exclui do tipo a modalidade de aposta de quota fixa, condicionando sua exploração a futura regulamentação. Enfim, num terceiro momento, a Lei nº 14.790/23 dá parâmetros para a exploração das apostas de quota fixa e, expressamente, permite que recaiam também sobre jogos on-line. Nesse ínterim, à falta de regulamentação clara, pairava grande incerteza quanto à licitude de jogos como o “tigrinho” e as “bets”, o que impulsionou o crescimento desse mercado, inundando as mídias com publicidade e, enfim, atingindo amplamente o público consumidor.
Deixando de lado, por um instante, as questões propriamente jurídicas atreladas ao tema, fato é que o impacto econômico desse setor é expressivo, mesmo em tão pouco tempo e em contexto de tamanha incerteza. Estima-se que o segmento movimentou cerca de R$ 100 bilhões no ano de 2023, dos quais até R$ 50 bilhões deixaram de ser gastos em bens e serviços, cifras que, aliás, não ficam no Brasil, já que, como forma de blindagem, grande parte das empresas por trás dessas plataformas operam de fora do País. Além disso, de acordo com o Banco Central, beneficiários do Bolsa Família gastaram R$ 3 bilhões em apostas via pix só em agosto deste ano, o que preocupa o Ministério da Fazenda diante
Deixando de lado, por um instante, as questões propriamente jurídicas atreladas ao tema, fato é que o impacto econômico desse setor é expressivo, mesmo em tão pouco tempo e em contexto de tamanha incerteza. Estima-se que o segmento movimentou cerca de R$ 100 bilhões no ano de 2023, dos quais até R$ 50 bilhões deixaram de ser gastos em bens e serviços, cifras que, aliás, não ficam no Brasil, já que, como forma de blindagem, grande parte das empresas por trás dessas plataformas operam de fora do País. Além disso, de acordo com o Banco Central, beneficiários do Bolsa Família gastaram R$ 3 bilhões em apostas via pix só em agosto deste ano, o que preocupa o Ministério da Fazenda diante do risco de superendividamento. Ainda no âmbito familiar, notícias recentes relatam o aumente de divórcios motivados pelo vício em jogos on-line, com repercussões patrimoniais significativas.
Autores como Carlos Alberto Dabus Maluf e Adriana Caldas do Rego Freitas definem o regime de bens como conjunto de normas aplicáveis às relações e interesses econômicos que resultam do casamento; ou seja, que permeiam a relação familiar. Representa outrossim o estatuto patrimonial dos cônjuges. Em outras palavras, a essência das relações econômicas entre os cônjuges é o regime de bens escolhido, pois ele definirá as diretrizes patrimoniais do casamento, estabelecendo como será a administração dos bens, se haverá necessidade de consentimento do outro cônjuge para determinados atos e como se dará a responsabilidade pelas dívidas, tanto durante o casamento quanto na sua dissolução, regulando a forma de partilha dos bens.
O Código Civil prevê quatro regimes de bens: comunhão parcial (artigos 1.658 a 1.666), comunhão universal (artigos 1.667 a 1.671), participação final nos aquestos (artigos 1.672 a 1.686) e separação total de bens (artigos 1.687 e 1.688). Este artigo abordará especificamente os regimes da comunhão parcial de bens.
No regime de comunhão universal de bens, vigente como regime legal até 1977, todos os bens atuais e futuros dos cônjuges se comunicam, exceto aqueles excluídos pela lei, como os recebidos por doação ou herança com cláusula de incomunicabilidade e os sub-rogados em seu lugar, e as hipóteses previstas nos artigos 1.668 e 1.659, incisos V a VII, do Código Civil. Contudo, a incomunicabilidade não se aplica aos frutos e rendimentos obtidos durante o casamento.
No regime legal de comunhão parcial de bens, presume-se a comunicação dos bens adquiridos durante o casamento, conforme o artigo 1.658 do Código Civil, salvo as exceções previstas nos artigos 1.659 e 1.662, que definem quais bens são excluídos da comunhão (bens particulares de cada cônjuge) e quais integram o patrimônio comum do casal. Esse regime será o vigente na ausência de pacto antenupcial e quando os cônjuges não forem obrigados, pela lei, a um regime de separação.
Assim, com o fim da sociedade conjugal, surge a obrigação de realizar a divisão de bens. Nos regimes de comunhão, após o término do casamento, cada cônjuge tem direito à meação, que é um efeito imediato ao solicitar a partilha dos bens comuns. Durante o casamento, esse direito se limitava a uma mera expectativa.
É relevante destacar que, no regime de comunhão parcial de bens, cada cônjuge possui seu próprio patrimônio individual, além do patrimônio comum, conforme o artigo 1.663, § 2º, do Código Civil. Assim, os bens comuns respondem por dívidas contraídas por apenas um dos cônjuges somente quando se comprova que houve benefício para ambos. De maneira semelhante, o artigo 1.644 do mesmo Código estabelece que as dívidas contraídas para a aquisição de itens necessários à economia doméstica obrigam solidariamente ambos os cônjuges. Ou seja, se a obrigação assumida por apenas um dos cônjuges não se destina ao sustento da família, às despesas administrativas ou a obrigações legais, não há solidariedade passiva entre eles.
Nesse sentido, como se encaixam dívidas contraídas por um dos cônjuges em jogos de apostas? Ainda que essa discussão com novos contornos não tenha chegado aos Tribunais, já é possível antever a solução para a partilha de dívidas oriundas de jogos on-line na comunhão parcial de bens. Isso porque, em tal regime, por força do disposto no artigo 1.644 do Código Civil, há presunção relativa de que a administração do patrimônio comum do casal por um dos cônjuges se dá em benefício da entidade familiar, e, assim, dívidas contraídas na constância do casamento tendem a ser partilhadas no divórcio. Nesse contexto, atribui-se ao cônjuge que se sente prejudicado o ônus de provar que determinado débito foi contraído sem sua anuência e no exclusivo interesse de seu ex-cônjuge.
De outro ângulo, o grau de dificuldade desse ônus é incerto, especialmente com a nova dinâmica dos jogos de azar. Como dito, grande parte das empresas que exploram esse tipo de atividade opera de fora do Brasil, dificultando a fiscalização; além disso, os aportes e resgastes são feitos via PIX com chaves indicadas pelo apostador, obstáculo ao conhecimento do cônjuge tanto em relação às perdas, quanto no que toca aos possíveis ganhos. Ademais, a regulamentação plena dos cassinos on-line e das plataformas de apostas esportivas pode repercutir na aceitação social dessas atividades, de sorte a elevar o standard para comprovação de que a dívida contraída não deve ser partilhada. Embora não sejam investimentos, jogos e apostas são, ilusoriamente, vistos como uma oportunidade de mudança de vida, sendo, inclusive, realizados em conjunto, ao passo que, havendo perda, um dos cônjuges tenta se eximir da responsabilidade.
Esse cenário alarmante de superendividamento, ao nosso entender, envolve não apenas uma preocupação pública — seja quanto à regulamentação das “bets” ou ao uso de verba do Bolsa Família para apostas —, mas também questões de planejamento patrimonial, especialmente à luz do art. 1.644 do Código Civil.
É crucial acompanhar a consolidação da jurisprudência a respeito da responsabilização de cônjuge alheio à dívida em caso de eventual separação. Dependendo da posição dos Tribunais, podem ser necessárias medidas adicionais, como cláusulas em pactos antenupciais ou até uma reforma legislativa quanto à solidariedade conjugal em dívidas.
A única certeza é que o impacto do “tigrinho” ainda será amplamente mensurado no direito, exigindo possíveis políticas públicas. Referidas políticas, por sua vez, repercutirão na forma como os Tribunais recepcionam disputas relacionadas a partilha de dívidas, sendo certo que um planejamento patrimonial adequado pode contornar incertezas, bem como prevenir ou simplificar eventuais litígios.
Author: Vinicius Conga Lima e Matheus Leonidas Maciel