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26/05/25

Contrato de namoro e planejamento patrimonial: como os tribunais e o STJ enfrentam a questão

Não é novidade que nas últimas décadas a preocupação relacionada à proteção patrimonial vem aumentando, seja em decorrência de maior publicidade de informações atreladas ao patrimônio dos indivíduos[1], seja em decorrência da facilidade atual de obter tais informações.

Em decorrência disso, os instrumentos para proteção patrimonial também têm cada vez mais ganhado espaço no mundo jurídico, com o surgimento quase que cotidiano de novas estratégias de planejamento, gerenciamento e proteção patrimoniais.

Um instrumento de proteção patrimonial que tem ganhado espaço nos últimos anos, sobretudo após a pandemia da Covid-19 – que fez com que muitos casais passassem a morar juntos –, é o denominado “contrato de namoro”.

O contrato de namoro é, como é presumível de seu nome, um negócio jurídico celebrado entre duas partes – ou seja, celebrado entre o casal – no qual elas declaram possuir entre si relação amorosa de namoro, sem o intuito de formar união estável.

A ideia de tal negócio jurídico é, para além de declarar a situação de fato que é o relacionamento do casal enquanto namoro, indicar expressamente a ausência de interesse na constituição de união estável, que é uma situação de fato apta a ensejar consequências patrimoniais quando configurada. Isto é, se não expressamente reconhecida a união estável entre o casal, com a eleição do regime de bens entre eles, existe o risco de, em caso de falecimento de um dos cônjuges ou quando do término do relacionamento, ser reconhecida tal situação de fato.

Nesse cenário, vigoraria o regime de bens da comunhão parcial de bens entre o casal, pela regra legal do art. 1.725 do Código Civil (Lei nº 10.406/2002), segundo a qual: “Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens”.

Para afastar o risco de eventualmente vir a ser reconhecida a união estável entre o casal, com todos os efeitos dela advindos – efeitos que são, a rigor, equiparados ao do casamento –, o contrato de namoro é um instrumento “para assegurar a ausência de comprometimento recíproco e a incomunicabilidade presente e futura do patrimônio […] em busca de segurança jurídica[2]. Ou seja, pelo instrumento, o casal expressamente reconhece que a situação de fato deles carece dos elementos necessários à configuração da união estável (a saber: “convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”, conforme art. 1.723 do Código Civil).

No entanto, embora a finalidade perseguida na celebração de tal contrato seja mitigar o risco de eventualmente vir a ser reconhecida uma união estável entre as partes, não se pode desconsiderar que as relações interpessoais são dinâmicas. Assim, da mesma forma que um casal que celebrou um contrato de namoro pode, no dia seguinte, pôr fim à relação fática de namoro; o casal também pode passar a reunir, logo na sequência da celebração contratual, as condições que a lei prevê para configuração de união estável.

Nesse cenário, o contrato de namoro pode não ser uma forma inconteste de proteção patrimonial, justamente em razão do dinamismo das relações interpessoais; e a existência do contrato de namoro não flexibiliza, tampouco suprime, a subsunção das partes àquilo que prevê a lei acerca da união estável (art. 1.723 do CC). É dizer, ainda que celebrado contrato de namoro, a união estável pode vir a ser reconhecida caso os cônjuges mantenham relacionamento que reúna as condições para tanto.

No entender doutrinário, o “contrato de namoro não produzirá efeito se provada a união estável, como também não os produzirá se apenas o superficial, singelo e fugaz namoro, na pureza de sua essência, persistir”, justamente porque “O amor por si só, entendido como afeto, ternura, amparo, proteção recíproca e relação sexual, não pode ficar preso a planos futuros e a contratos de curta ou média duração. Apesar de tudo que se diz e que se disse a respeito desses contratos. Há que se deixar o amor seguir seu próprio caminho e se a vida levar para uma união estável ou casamento, estar-se-á seguindo uma ordem natural[3].

Daí porque, embora o contrato de namoro seja válido e gere efeitos retroativos (desde o início do relacionamento até a data de sua celebração), ele pode vir a ser questionado à luz das circunstâncias fáticas. Por isso, quando celebrado isoladamente e com o único intuito de burlar o regime de bens que vigora na situação de fato, o irretocável entendimento de Maria Berenice Dias de que: “O contrato, com a finalidade de blindagem de patrimônio individual, seria um nada jurídico[4].

O entendimento jurisprudencial nos Tribunais Estaduais e Regionais e no Superior Tribunal de Justiça sobre o tema

O Tribunal de Justiça de São Paulo chancela a validade do negócio jurídico celebrado no que toca à circunstância pretérita do casal. No julgamento da Apelação Cível nº 1007161-38.2019.8.26.0597, sob relatoria da Desª. Cristina Medina Mogioni[5], ponderou-se que “no momento em que as partes firmaram contrato de namoro fica evidente que não pretendiam constituir família com a união estável, tampouco compartilhar bens e obrigações. Tais contratos visam a proteção patrimonial dos apaixonados, afastando qualquer possibilidade de se confundir com a união estável que, sabidamente, gera efeitos patrimoniais”.

Entretanto, os tribunais pátrios também admitem que, mesmo com a celebração de contrato de namoro, a situação fática há de se sobrepor, caso seja diversa daquela descrita contratualmente. Nesse sentido, no julgamento do Agravo de Instrumento nº 0138594-20.2024.8.13.0000, sob relatoria da Desª. Ângela de Lourdes Rodrigues, o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais pontuou que “Não se desconsidera os esforços argumentativos […] para afastar o reconhecimento da união estável, que alega que foi celebrado contrato de namoro e de que houve rompimento do relacionamento. Todavia, é certo pontuar que a União Estável se trata de situação de fato, sendo certo que a situação fática entre as partes se sobrepõe ao instrumento de direito do contrato de namoro[6]. Isto é, reconheceu-se que, a despeito da existência (e da validade) de contrato de namoro celebrado, seus termos ficam superados pelo preenchimento posterior dos requisitos para o reconhecimento de união estável do casal.

Embora seja vedado ao Superior Tribunal de Justiça analisar cláusula contratual e reexaminar arcabouço fático-probatório, por força dos seus enunciados das Súmulas 5 e 7, na oportunidade do julgamento do AREsp 1149402/ RJ[7], a Corte Superior manteve o entendimento do Tribunal Regional Federal da 2ª Região no sentido de que “pela regra da primazia da realidade, um ‘contrato de namoro’ não terá validade nenhuma em caso de separação, se, de fato a união tiver sido estável”.

No acórdão do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, levado à apreciação do Superior Tribunal de Justiça, o Des. Sergio Schwaitzer ratificou o posicionamento da prevalência fática em relação às declarações contidas no contrato de namoro, e fez um paralelo de que “A contrario sensu, se não houver união estável, mas namoro qualificado que poderá um dia evoluir para uma união estável, o ‘contrato de união estável’ celebrado antecipadamente à consolidação desta relação não será eficaz, ou seja, não produzirá efeitos no mundo jurídico[8].

CONCLUSÃO.

Nesse cenário, ainda que o arcabouço jurisprudencial acerca do tema seja incipiente, e chancele a validade do contrato de namoro (sobretudo do início do relacionamento até a data de sua celebração), vale a ressalva de que sua pertinência no contexto do planejamento patrimonial deve considerar outras variáveis, sobretudo para mitigar os riscos e garantir maior segurança jurídica quanto ao período que segue à sua celebração.

 

[1] Não apenas mediante os sistemas integrados ao Poder Judiciário de pesquisa judicial (como o INFOJUD, com a Receita Federal do Brasil; RENAJUD, com o Departamento Nacional de Trânsito, SISBAJUD com Banco Central do Brasil e afins), mas também em razão do vazamento de dados e informações, que alcançam, inclusive, ativos localizados no exterior (como, por exemplo, ICIJ Offshore Leaks Database).

[2] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 14ª ed. rev. ampl. e atual. Salvador: Editora JusPodivm, 2021, p. 620.

[3] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: família. 17ª ed. São Paulo: Atlas, 2017, p. 45.

[4] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 14ª ed. rev. ampl. e atual. Salvador: Editora JusPodivm, 2021, p. 621.

[5] “Apelação. Família. Ação de divórcio litigioso, alimentos e partilha de bens. Sentença que decreta o divórcio e partilha, na proporção de 50% para cada um, os valores pagos pelo imóvel durante o casamento. Recurso de ambas as partes. Partes que firmaram contrato de namoro, que exclui a existência de união estável anterior ao casamento. Contrato firmado que não constitui pacto antenupcial. Obrigações lá assumidas que não podem ser discutidas na ação de divórcio. Bens adquiridos antes do casamento que não devem ser partilhados. Prestações do imóvel de propriedade exclusiva do réu pagas durante o casamento que devem ser partilhadas na proporção de 50% para cada um. Alimentos que não são devidos à autora. Requerente pessoa jovem e apta a trabalhar, ainda que momentaneamente desempregada. Sentença mantida. RECURSOS DESPROVIDOS” (TJSP; Apelação Cível nº 1007161-38.2019.8.26.0597; 6ª Câmara de Direito Privado; Relatora Desª. Cristina Medina Mogioni; Data da Decisão: 2/6/2021; Data de Publicação: 2/6/2021; grifamos).

[6] Assim ementado: “AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DE DIVÓRCIO LITIGIOSO C/C ARROLAMENTO DE BENS – UNIÃO ESTÁVEL – ANTERIOR AO CASAMENTO – EVENTUAL DIREITO À MEAÇÃO – RESGUARDO – RISCO DE DILAPIDAÇÃO – A caracterização da união estável pressupõe a demonstração de convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida pelos(as) companheiros(as) com objetivo de constituição de família, nos termos do art. 1.723 do Código Civil de 2002. – Na união estável, o regime de bens aplicável é o da comunhão parcial, comunicando-se os bens adquiridos onerosamente na constância da relação, salvo se os companheiros dispuserem em sentido contrário (art. 1.725 do CC). – De regra, então, comunicam-se os bens que sobrevierem ao casal na constância da união, em caráter oneroso, conforme dispõe o art. 1.658 do CC, sendo irrelevante perquirir acerca da colaboração individual na aquisição, presumindo-se que resultou do esforço comum – O art. 300 do CPC estabelece como requisitos à concessão da tutela provisória a probabilidade do direito e o perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo. – Consigna-se que o art. 301 do CPC possibilita o deferimento em sede de tutela de urgência cautelar de quaisquer medidas idôneas a resguardar possível direito – Havendo indícios de dilapidação patrimonial e diante da probabilidade do direito da parte à meação dos bens, a manutenção da decisão agravada é medida que se impõe.” (TJMG; AI 0138594-20.2024.8.13.0000; 8ª Câmara Cível Especializada; Relatora Desª. Ângela de Lourdes Rodrigues; j. em 26/4/2024).

[7] STJ; AgInt no AREsp 1149402/RJ; 2ª Turma; Rel. Min. Og Fernandes; j. em 21/3/2018.

[8] Assim ementado: “PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. PENSÃO ESTATUTÁRIA POR MORTE. COMPANHEIRO. CONDIÇÃO NÃO OSTENTADA. UNIÃO ESTÁVEL. INEXISTÊNCIA. NAMORO QUALIFICADO. REDISCUSSÃO DA MATÉRIA. PRETENSÃO DE REFORMA DO JULGADO. REJULGAMENTO. INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS PREVISTOS NO ART. 535 DO ANTIGO CPC, OU NO ART. 1.022 DO NOVO CODEX. SEDE PROCESSUAL INADEQUADA. EXCEPCIONALIDADE DOS EFEITOS INFRINGENTES. RESOLUÇÃO INTEGRAL, CONSISTENTE E MOTIVADA DA QUESTÃO POSTA EM JUÍZO. CONFORMIDADE COM O PRINCÍPIO DA FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS. PRÉ-QUESTIONAMENTO. FUNDAMENTAÇÃO LEGAL PARA FIM DE ACESSO ÀS INSTÂNCIAS SUPERIORES. DESNECESSIDADE. ART. 1.025 DO NOVO CPC. – Se as razões de embargos de declaração consistem em nítida rediscussão da matéria apreciada e exaurida no acórdão embargado, tal pretensão, sendo de reforma do julgado, mediante inapropriado rejulgamento, não encontra sede processual adequada na via declaratória, restrita ao saneamento dos vícios previstos no art. 535 do antigo CPC, ou no art. 1.022 do novo Codex, ou de erro material nos termos do art. 463, I, do antigo CPC, ou do art. 494, I, do novo Codex, quando os efeitos infringentes são extremamente excepcionais. – O órgão julgador não está obrigado a rebater especificamente todos os argumentos da parte, quando, por outros motivos, devidamente expostos e suficientemente compreensíveis, tiver firmado seu convencimento e resolvido, integral e consistentemente, a questão posta em juízo, a partir das alegações apresentadas e provas produzidas, conforme o princípio da fundamentação das decisões judiciais. – A iterativa jurisprudência da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça e do Pleno do Supremo Tribunal Federal, órgãos de cúpula do Poder Judiciário do Estado Brasileiro no que tange, respectivamente, às questões de interpretação e aplicação do direito constitucional e do direito federal infraconstitucional, firma-se no sentido de que desnecessária é a menção expressa aos dispositivos incidentes e aplicados na decisão proferida, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais para o fim de aferir-se a pertinência de percurso das vias recursais extraordinária e/ou especial. – Além disso, cumpre pontuar que, por força do art. 1.025 do novo CPC, “consideram-se incluídos no acórdão os elementos que o embargante suscitou, para fins de pré-questionamento, ainda que os embargos de declaração sejam inadmitidos ou rejeitados, caso o tribunal superior considere existentes erro, omissão, contradição ou obscuridade”. – Recurso não provido.” (TRF2; Apelação/Reexame Necessário nº 0004779-38.2014.4.02.5101; Vice-presidência; Relator Des. Sergio Schwaitzer; j. em 12/5/2016).

Author: Isabella Mathioli

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