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10/10/24

As medidas executivas atípicas em debate no STJ

Não há dúvidas de que as execuções visando ao recebimento de quantia representam um importante gargalo do sistema judiciário brasileiro, o que se deve em boa parte à dificuldade de localização de bens dos devedores.

As medidas executivas atípicas são referidas pelo art. 139, IV, do CPC, o qual confere ao juiz poderes para “determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária”. O dispositivo legal – cuja constitucionalidade já foi declarada pelo Supremo Tribunal Federal1 – passará pelo crivo da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, para que se defina se, “com esteio no art. 139, IV, do CPC/15, é possível, ou não, o magistrado, observando-se a devida fundamentação, o contraditório e a proporcionalidade da medida, adotar, de modo subsidiário, meios executivos atípicos” (Tema 1.137/STJ2). Não há previsão de julgamento, mas o Tema 1.137/STJ já chama bastante a atenção no contencioso porque foi determinada a suspensão do processamento de processos e recursos pendentes que versam sobre questão idêntica e que tramitam em todo o território nacional – situação que causa desgosto aos credores e alívio aos devedores.

Os recursos afetados são oriundos do Tribunal de Justiça de São Paulo e trataram sobre suspensão de CNH, restrição de passaporte e bloqueio de cartões de crédito3, mas o STJ poderá abordar outras medidas atípicas já eventualmente aplicadas na experiência forense. No STJ, já foram admitidos como amici curiae o Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC), o Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), a Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPRO) e a Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN).

Espera-se que o STJ defina requisitos para a aplicação das medidas executivas atípicas nas execuções. De recentes julgados sobre o tema, é possível extrair ao menos quatro requisitos4 que poderão ser discutidos:

(i) Esgotamento das medidas típicas: prevalência do critério da subsidiariedade das medidas atípicas, de modo a ser necessário esgotar todos os meios executórios típicos antes de recorrer às medidas atípicas. Em outras palavras, somente após o insucesso das diligências típicas e na presença de indícios de ocultação patrimonial é que se permitirá a adoção de medidas atípicas5. Nem sempre a medida típica é menos onerosa ao devedor, podendo, no caso concreto, serem observadas medidas atípicas que causem menos danos ao devedor e, assim, atendam ao princípio da menor onerosidade (art. 805, caput, do CPC). A título exemplificativo, em ações de despejo, a medida executiva típica é a desocupação forçada do imóvel, ao passo poderia ser adotada medida atípica de restrição de acesso aos serviços de Internet ou televisão –que, frente à possível desocupação do imóvel, tendem a ser menos onerosas.

(ii) Razoabilidade e proporcionalidade: a adoção das medidas atípicas deve observar os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, analisados à luz do caso concreto. As medidas atípicas têm o propósito de compelir o devedor a cumprir a obrigação, mas não podem prejudicá-lo de maneira desproporcional, em prejuízo de sua sobrevivência – sob pena de caracterizar verdadeira punição para quem tem dívida civil6, perdendo sua finalidade de compeli-lo ao cumprimento da obrigação. É o caso, por exemplo, de suspensão de CNH de motoristas de aplicativo ou taxistas, ou mesmo de pessoas que sequer dirigem: enquanto no primeiro caso a medida é excessivamente gravosa por inviabilizar a sobrevivência do devedor, no segundo caso ela carece de utilidade prática.

(iii) Contraditório: exige-se que o devedor seja intimado previamente ao deferimento da medida, para que o executado tenha a oportunidade de demonstrar a ineficácia ou desproporcionalidade da providência, cabendo destacar que, em regra, sua intimação prévia não implica risco para a eficácia da medida porque, em razão de seu caráter – a princípio – subsidiário, presume-se não ter sido localizado patrimônio suficiente do devedor para adimplemento da obrigação. No entanto, caso tal risco seja demonstrado, é possível o diferimento do contraditório, como a própria lei processual prevê, por exemplo, para a penhora de ativos financeiros (art. 854, caput, do CPC).

(iv) Fundamentação: é imperativo que toda decisão judicial seja fundamentada, conforme estabelecem os arts. 11 do CPC e 93, IX, da CF. Especificamente em relação às medidas atípicas, exige-se uma motivação ainda mais detalhada por parte do magistrado, que inclua a demonstração da adequação e proporcionalidade da medida ao caso concreto.

Para além dos requisitos acima indicados, e a despeito da constitucionalidade do art. 139, IV, do CPC, as medidas eventualmente deferidas podem ser consideradas inconstitucionais à luz do caso concreto. Isso significa que a legalidade e a compatibilidade de eventual medida adotada com o texto constitucional devem ser avaliadas com base nas circunstâncias específicas de cada caso. Os meios atípicos também têm seus limites nos direitos e liberdades constitucionais, os quais não podem ser ultrapassados sob o pretexto de resolver dívidas civis não pagas, tal como nas medidas que violem a honra, a integridade física, direitos de personalidade e outros direitos constitucionais.

 

1 O STF, no julgamento da ADI 5.941, reconheceu a constitucionalidade do dispositivo, pois “não se pode concluir pela inconstitucionalidade de toda e qualquer hipótese de aplicação dos meios atípicos indicados na inicial, mercê de este entendimento, levado ao extremo, rechaçar quaisquer espaços de discricionariedade judicial e inviabilizar, inclusive, o exercício da jurisdição, enquanto atividade eminentemente criativa que é. Inviável, pois, pretender, apriorística e abstratamente, retirar determinadas medidas do leque de ferramentas disponíveis ao magistrado para fazer valer o provimento jurisdicional” (STF, ADI 5.941/DF, Rel. Min. Luiz Fux, Pleno, j. 9/2/2023, DJe 28/4/2023).

2 A Segunda Seção do STJ afetou os REsps 1.955.539/SP e 1.955.574/SP à sistemática dos recursos repetitivos para consolidar entendimento sobre os requisitos para adoção de medidas atípicas. Determinou-se, ainda, a suspensão de todos os recursos em que se examinam a questão afetada, não implicando, porém, na suspensão das execuções em primeira instância ou mesmo de recursos em que se discutam a utilização de medidas típicas.

3 “Em ambos os casos, o TJSP indeferira tanto a suspensão da CNH quanto a restrição de passaporte dos devedores; em um deles, no entanto, foi deferido o bloqueio de cartões de crédito (desde que não fosse utilizado pelo executado para a aquisição de alimentos), medida essa que foi denegada pela mesma Corte bandeirante no outro recurso” (cf. Nathan Christian Coelho Silvestre, Tutela jurisdicional executiva, poderes instrutórios e medidas executivas atípicas, Revista de Processo, vol. 352, p. 117/154, jun. 2024, p. 2/3 da versão da RT online).

4 No julgamento do REsp 1.788.950/MT, já havia sido definido que “é possível ao juiz adotar meios executivos atípicos, desde que, verificando-se a existência de indícios de que o devedor possua patrimônio apto a cumprir a obrigação por ele imposta, tais medidas sejam adotadas de modo subsidiário, por meio de decisão que contenha fundamentação adequada às especificidades da hipótese concreta, com observância do contraditório e do postulado da proporcionalidade” (STJ, REsp 1.788.950/MT, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 23/4/2019; grifamos).

5 Nesse sentido, leciona Renato Beneduzi: “O juiz deve levar em conta, ao decidir, de todo modo, a existência de indícios de que o executado pode cumprir, mas que se recusa a fazê-lo não apenas de modo a frustrar a satisfação da pretensão executada, mas também de modo a desafiar a autoridade da Justiça. A regra, em outras palavras, não deixa de continuar a ser o uso das medidas típicas e o de medidas atípicas a exceção” (cf. Renato Beneduzi, Comentários ao Código de Processo Civil, art. 139, vol. II, Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero coord., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2016, p. 245/246).

6 Para Fernando Fonseca Gajardoni, em casos nos quais inexistem indícios de existência de patrimônio do devedor, as medidas atípicas não podem ser empregadas, sob pena de se tornarem uma sanção ao executado. Além disso, para o mencionado autor, “não parece razoável, assim: a) eleger medida executiva atípica que não tenha o condão de induzir/garantir o pagamento ou a revelação de bens, como na aplicação de medidas de suspensão de CNH de quem não costuma dirigir, apreensão do passaporte de quem não costuma sair do país, bloqueio [de] cartões de crédito de quem não tem crédito; b) aplicar indistintamente, inúmeras medidas atípicas concomitantemente, antes de testar se apenas uma delas não é capaz de induzir ao cumprimento; ou c) intervir na esfera privada ou de terceiros para forçar o cumprimento da obrigação, obstando, v.g., que o devedor mantenha seus filhos estudando em colégio particular ou tenha plano privado de saúde, ou impedindo que celebre negócios com terceiros estranhos ao processo” (cf. Fernando Fonseca Gajardoni, Comentários ao Código de Processo Civil, art. 139, Fernando Fonseca Gajardoni et al., 4ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2021, p. 466).

Autor: Rafael Ottoni Nogueira, Maria Victoria da Cunha Machado e Nathan Coelho Silvestre

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