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09/01/24

Um novo parâmetro para atualização de dívidas civis: a decisão do STJ sobre a utilização da SELIC

A Corte Especial do STJ julgará o REsp 1.795.982/SP, em que se discute a utilização da taxa Selic para fins correção de débitos judiciais de natureza civil, em detrimento dos índices de correção monetária adotados em tabelas dos diferentes Tribunais Estaduais, Federais e do Distrito Federal e da incidência da taxa de 1% (um porcento) a título de juros moratórios.

Ao contrário do Código Civil de 1916, que determinava a incidência de juros moratórios à taxa de 6% ao ano (art. 1.062 do CC/1916), o art. 406 do Código Civil de 2002 vinculou a taxa de juros aplicável às dívidas civis à “taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional”, inaugurando discussões a respeito da taxa aplicável quando os juros moratórios não forem convencionados pelas partes.

Diante disso, são possíveis dois cenários (i) aplicação do art. 161, §1º, do CTN (“Se a lei não dispuser de modo diverso, os juros de mora são calculados à taxa de um por cento ao mês”); ou (ii) incidência dos arts. 13 da Lei nº 9.065/95, 39, §4º, da Lei nº 9.250/95, 5º, §3º, da Lei nº 9.430/96 e 30 da Lei nº 10.522/02, com aplicação da variação da taxa Selic, sem cumulação com fatores de correção monetária.

Embora referido recurso especial não tenha sido afetado pela sistemática dos recursos repetitivos, é certo que a decisão será um importante precedente, pois a Corte Especial do STJ busca conferir uma solução uniforme para a controvérsia. No passado, a matéria já foi objeto de julgamento pela mesma Corte Especial, que na época assentou que “a taxa dos juros moratórios a que se refere o referido dispositivo é a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia – SELIC, por ser ela a que incide como juros moratórios dos tributos federais” (STJ, EREsp 727.842, Rel. Min. Teori Zavascki, Corte Especial, j. 8/9/2008). Apesar da decisão da Corte Especial pela aplicação da taxa Selic, são inúmeras as decisões de Turmas do STJ em sentido oposto, aplicando-se a taxa de juros de 1% ao mês acrescida de algum índice de correção monetária: AgInt no AREsp 1.118.365/AM, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, j. 12/12/2017; REsp 1.943.335/RS, Rel. Min. Moura Ribeiro, Terceira Turma, j. 14/12/2021; AgInt no AREsp 1.858.865/CE, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, j. 16/8/2021; REsp 1.473.828/RJ, Rel. Min. Moura Ribeiro, Terceira Turma, j. 27/10/2015; AgRg no Ag 925.081/RS, Rel. Min. Raul Araújo, Quarta Turma, j. 18/3/2014.

Agora o tema volta à tona. O julgamento do REsp 1.795.982/SP teve início em 1º/3/2023, com a prolação do voto do Ministro Luis Felipe Salomão favorável à aplicação da taxa de juros moratórios de 1% ao mês acrescida de índice de correção monetária (cf. art. 161, §1º, CTN). Para o Relator, a taxa básica de juros definida pelo Banco Central é um instrumento de política monetária para combate à inflação, não cumprindo a função básica dos juros moratórios para dívidas civis, que devem induzir o devedor ao cumprimento da obrigação. Acompanhou o voto do Relator o Ministro Humberto Martins.

Já o Ministro Raul Araújo, em seu voto divergente, defendeu a aplicação da taxa de juros prevista em casos de mora para pagamento de impostos devidos à Fazenda – a qual atualmente é a taxa Selic – citando o art. 3º da Emenda Constitucional 113/2021, que alterou a Constituição Federal para estabelecer a Selic como taxa referencial para fins de atualização monetária e compensação da mora nas discussões e condenações envolvendo a Fazenda Pública. Defende, ainda, que não se deve impor ao devedor uma elevada taxa de juros de mora combinada com atualização monetária, pois isso conferiria ao credor remuneração superior a aplicações financeiras. Acompanhou o voto divergente o Ministro João Otávio de Noronha.

Tão importante quanto a definição sobre a taxa de juros aplicável é entender como eventual utilização da Selic ou dos juros de 1% ao mês acrescido de correção monetária deve impactar as demandas em curso, seja aquelas ainda em fase de conhecimento ou em fase de cumprimento do julgado; sobretudo porque as demandas da Justiça Estadual representam 73% dos processos em trâmite em todo país, sendo os assuntos relacionados ao cumprimento contratual e obrigações responsáveis por mais de 6 milhões de processos, segundo o Relatório do CNJ Justiça em Números 2023 (https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/09/justica-em-numeros-2023-010923.pdf). Não menos importante é o impacto sobre as demandas que posteriormente ingressarão no Judiciário e serão afetadas pelo julgado, especialmente em razão da previsibilidade sobre o prognóstico de êxito do demandante.

Uma das dúvidas sobre o assunto gira em torno dos inúmeros casos que demandam a utilização de múltiplos critérios de cálculo, com incidência de juros de forma independente do cálculo da correção monetária. A título de exemplo, a Súmula 362/STJ estabelece que “A correção monetária do valor da indenização do dano moral incide desde a data do arbitramento”, ao passo que a Súmula 54/STJ prevê que “os juros moratórios fluem a partir do evento danoso, em caso de responsabilidade extracontratual”. Em situações como essa, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul decidiu pela fusão de diversos critérios de atualização dos valores e cômputo de juros, para ao final aplicar a taxa Selic:

 

O valor da indenização pelo dano moral deverá ser acrescido de juros de mora de 0,5% ao mês, desde a data do evento danoso (28/8/1998) até a entrada em vigor do Código Civil de 2002, passando, a partir desse marco, para o percentual de 1% ao mês até a data da sentença (arbitramento), quando, então, deverá incidir tão somente a SELIC. Sobre a quantia estabelecida a título de dano material, deverá incidir juros de mora de 0,5% ao mês e correção monetária pelo IPCA, desde o evento danoso até a vigência do Código Civil de 2002, quando, então, passará a incidir tão somente a SELIC, tudo em conformidade com o entendimento firmado nos Temas 99 e 112 do STJ, harmonizando com o disposto nos enunciados das Súmulas 43, 54 e 362 do STJ, conforme posicionamento exarado no AgInt no RESp 1683082/MA” (TJRS, apelação nº 5000017-93.2018.8.21.0022, Rel. Des. Tasso Caubi Soares Delabary, 9ª Câmara Cível, j. 17/10/2023).

 

A Corte Sulista, em suma, buscou encaixar em um único julgado todos os padrões formados pela jurisprudência ao longo dos anos, concluindo pela incidência da taxa Selic a partir da prolação da sentença; porém, como se percebe, o resultado não é dos mais práticos. Por outro lado, também não se pode ignorar as teses fixadas pelo E. STJ nos Temas 99 e 112, em interpretação do art. 406 do CC/02, segundo as quais “a taxa dos juros moratórios a que se refere o referido dispositivo [art. 406 do CC/2002] é a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia – SELIC, que não pode ser cumulada com a aplicação de outros índices de atualização monetária”.

Em um cenário perfeito, onde não se está diante de fatores de complicação como esses, as diferenças são expressivas com relação ao que se, majoritariamente, adota hoje na Justiça Estadual. Nesse sentido, a tabela abaixo compara os cenários de atualização de alguns índices adotados pelos Tribunais de Justiça do país de uma condenação hipotética no valor de R$10.000,00, cujos juros e atualização monetária incidiriam desde a mesma data (aqui considerada 1º/10/2013) e a diferença com relação à adoção da Selic[1]:

As diferenças, como se percebe, são consideráveis.

É importante ressaltar que decisões dessa natureza proferidas pelo STJ podem ter seus efeitos modulados por força do que dispõe o art. 927, §3º, do CPC: “Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica”, o que convém seja considerado pelo STJ em caso de mudança de orientação.

É certo que, embora a comunidade jurídica espere que o referido julgamento encerre importantes divergências quanto à correta interpretação e aplicação do art. 406 do CC, não se pode olvidar que a decisão não será dotada de efeito vinculante para outros tribunais porque, segundo o art. 927 do CPC, os tribunais devem seguir “a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados”.

Acompanharemos, ansiosos, a continuação do julgamento que ficou adiado para 2024.

[1] Os Tribunais selecionados na tabela levam em consideração os que possuem o maior acervo de processos, segundo levantamento do CNJ:  https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/09/justica-em-numeros-2023-010923.pdf

Autor: Rafael Ottoni, Eduardo Gigante, Debora Alves

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