Artigos

-

02/01/23

Recomendação 134/2022 do CNJ e valorização dos precedentes

No dia 9 de setembro de 2022, foi publicada a Recomendação nº 134/2022 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), dispondo “sobre o tratamento dos precedentes no sistema brasileiro”. O ato normativo objetiva fortalecer o sistema de precedentes, qualificados como um dos principais métodos por meio dos quais o Judiciário brasileiro busca garantir segurança jurídica e isonomia em sua prestação jurisdicional, observando o que dispõem os artigos 926 e 927 do CPC. O sistema de precedentes também funciona como uma importante técnica de gestão de processos, sobretudo em litígios de natureza massificada.

Como hipótese de exceção à aplicação de um precedente vinculante, em seu art. 14, a citada Recomendação aconselha que seja feito, pelo próprio juiz natural da controvérsia e de forma minuciosa, o efetivo distinguishing entre o precedente (paradigma) e o caso concreto sob sua análise. Trata-se de situação legítima, portanto, na qual um determinado entendimento vinculante não é aplicado pelo órgão julgador de forma justificada.

Do ponto de vista lógico, só é possível haver um sistema de precedentes fortalecido se existirem regras claras sobre como a técnica do distinguishing deve ser realizada, a fim de que não haja a banalização de seu uso. Do contrário, a força do sistema de precedentes cairia por terra, uma vez que o juiz estaria livre para aplicar os precedentes a seu próprio arbítrio, sem uma metodologia formal coesa. Os precedentes seriam vinculantes “só no papel”, mas qualquer diferença fática, ainda que irrisória, faria com que o juiz se esquivasse de aplicar o precedente vinculante com base na técnica do distinguishing.

A própria Recomendação, atenta a essa realidade, pontua que o distinguishing pressupõe a inaplicabilidade da ratio decidendi do precedente vinculante ao caso sob análise. Ou seja, faz-se necessário extrair de um determinado precedente as razões de decidir (ratio decidendi) e, a partir daí, verificar se as mesmas razões estão presentes no caso sob análise, hipótese em que a solução prevista no precedente vinculante será de aplicação mandatória. Dentro de um sistema de precedentes, portanto, a noção de ratio decidendi ocupa um papel absolutamente central, pois é com base nela que o distinguishing pode, ou não, ser feito, e dela depende a efetividade, ou não, de um sistema de precedentes.

Contudo, a despeito da relevância do tema, a Recomendação em comento não vai ao ponto de definir o que se deve entender por ratio decidendi. A noção de ratio decidendi como a tese jurídica ou o ponto “central e relevante” de uma decisão judicial são definições correntes, mas notoriamente insuficientes. É necessário que tenhamos parâmetros mais objetivos de ratio decidendi para que seja possível identificá-la em julgados paradigmas com algum grau de uniformidade. Há algumas correntes doutrinárias[1] que nos ajudam a entender a definição de ratio decidendi e que podem ser aqui apenas brevemente exploradas.

Como primeiro possível método de identificação da ratio decidendi, denominado “fático-concreto”, a ratio decidendi deve corresponder à regra extraída de um conjunto de fatos, de forma que “sempre que estiverem presentes o fato A (relevante) e o fato B (relevante), e mesmo que ausente o fato C (irrelevante), a decisão será X”. Importa, aqui, o que foi decidido em relação a determinados fatos, e não “o que disse ou os fundamentos que invocou para justificar a decisão”[2] pelo julgador. Portanto, por esse método, a ratio decidendi será o conjunto de fatos sem os quais o órgão julgador não teria decidido da forma como decidiu. O aspecto positivo desse método é a maior segurança na identificação do conteúdo vinculante do julgado, o aspecto negativo é o de que tal método tende a restringir o âmbito de incidência do precedente, uma vez que impede a extrapolação de sua aplicação a situações que, conquanto diferentes do ponto de vista fático, poderiam ser resolvidas segundo a mesma fundamentação do precedente vinculante.

O método “abstrato-normativo”, fundado em uma tentativa de análise sistemática do direito, indica que, quando um tribunal decide uma causa, ele produz a solução para o caso concreto e para todos os casos futuros que guardem uma apropriada similitude. Assim, diferentemente do método fático-concreto, “os fundamentos da decisão são essenciais para compreender o entendimento que funcionou como pressuposto para a solução concreta alcançada”[3]. Para essa segunda corrente, o que importa não é o conjunto de fatos concretamente considerados pelo julgado paradigma, mas os fundamentos pelos quais aqueles fatos foram considerados relevantes para a aplicação de determinada norma jurídica, o que daria margem, portanto, a que outros fatos também fossem enquadrados sob a mesma ótica normativa, desde que inseridos dentro de um mesmo ponto de relevância hermenêutica. Aqui, portanto, o problema é o oposto da corrente anterior. Os precedentes vinculantes tenderiam a ter comandos superinclusivos, abrangendo situações fáticas nem sequer tangenciadas pelo julgamento do caso concreto.

Um exemplo pode ajudar a ilustrar a diferença entre a aplicação das duas correntes: pense-se na tese[4] fixada pelo Tema 444 do STJ, que estabelece diversos parâmetros para a contagem do prazo prescricional na hipótese de redirecionamento da execução fiscal. Pelo método fático-concreto, seria fundamental à aplicação dessa tese que o caso sub judice reunisse os fatos concretamente considerados pelo STJ na edição de tal precedente, notadamente a existência de uma execução fiscal, uma pessoa jurídica como devedora principal, sua dissolução irregular, a citação válida da pessoa jurídica e a inércia da Fazenda Pública. Pelo método abstrato-normativo, por outro lado, analisar-se-iam os fundamentos subjacentes que fizeram com que tais fatos fossem considerados relevantes para se estabelecer um prazo prescricional na pretensão de redirecionamento do feito executivo a sócios ou gerentes da pessoa jurídica. Caso se considere, por exemplo, que o fundamento relevante teria sido estabelecer um prazo dentro do qual é legítimo cogitar da extensão da responsabilidade patrimonial a terceiros, com tutela da segurança jurídica e estabilidade nas relações empresariais, poder-se-ia extrapolar a ratio decidendi de tal precedente para nela abranger também as desconsiderações da personalidade jurídica, mecanismo típico de extensão de responsabilidade patrimonial a terceiro, ainda que sem envolver necessariamente créditos fiscais e tampouco a Fazenda Pública. É perceptível, portanto, a radical diferença de amplitude que determinado precedente vinculante pode ter a depender da forma como ele é analisado.

Expostas essas duas correntes interpretativas, para fins de examinar a viabilidade de um distinguishing em determinado concreto, o órgão julgador poderá fazer um exame bifásico: 1 – na hipótese de o caso examinado ter um mesmo conjunto fático que aquele considerado pelo precedente vinculante (método fático-concreto), a aplicação da tese será mandatória e não será possível cogitar do distinguishing; 2 – caso, porém, os fatos se distanciem no essencial, o distinguishing em princípio, mostrar-se-á viável e a aplicação do precedente vinculante só deverá ocorrer se, a partir de uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico (método abstrato-normativo), os fundamentos do caso sub judice e do precedente vinculante forem juridicamente equiparáveis. Com isso, abrange-se, na identificação da ratio decidendi, a avaliação de quatro aspectos essenciais: os fatos relevantes; a questão jurídica posta em juízo; os fundamentos da decisão e a solução determinada pela corte.

Ou seja: o método padrão para extração da ratio decidendi seria o fático-concreto, por ser o que atribui maior segurança jurídica ao sistema, sendo o método abstrato-normativo utilizado apenas excepcionalmente e para calibrar a utilização do método anterior, coibindo soluções excessivamente restritivas. Assim, ainda que em momentos distintos e finalidades próprias, a análise prática de um precedente deve levar em consideração ambos os métodos, tanto os fundamentos (em abstrato), como a similitude fática concreta devem ser ponderados pelo operador do direito quando buscar validar a tese jurídica aplicada por meio de um precedente qualificado.

Naturalmente, a prática encerra desafios relevantes e não há fórmula mágica para essa complexa situação. O propósito deste breve artigo é, antes de tudo, chamar a atenção para a relevância desse debate e da necessidade de parâmetros para a realização do distinguishing. Deve-se ter em mente a relevância da ratio decidendi para a própria existência de um sistema de precedentes. Uma vez que a uniformização da jurisprudência é objetivo ínsito ao sistema normativo atual, é necessário que os operadores do direito tenham clareza quanto ao significado dessa expressão. Embora o CNJ, em sua Recomendação nº 134, não faça uma definição clara do que se entende por ratio decidendi, contribui significativamente para a compreensão da relevância desse instituto, ao pontuar que a realização do efetivo distinguishing pressupõe a análise da ratio decidendi do precedente vinculante.

A extração da tese da decisão judicial importa, inclusive para que esta faça sentido no contexto social em que se insere. Atender a um decisum perpassa exatamente por identificar o que ele tem de mandamental e o que tem de circunstancial. A verdadeira segurança jurídica e o tratamento isonômico daqueles que recorrem à justiça depende (sobretudo, mas não só) da estabilização das decisões judiciais, o que apenas atesta a imprescindibilidade do que dispõe a Recomendação nº 134 do CNJ.

Para ler na integra clique aqui.

Autor: Eduardo de Carvalho Becerra e João Manuel Bernardes Barbosa

  • Compartilhe: