Autor: Daniel Luiz Yarshell e Bianca Lereno
15/02/23
Não de hoje, a prescrição é vista como instituto fundamental ao Direito. Aliás, vem de Roma o brocardo “dormientibus non sucurrit Ius” (ou, em tradução, “o Direito não socorre os que dormem”).
Além de fundamental (e talvez justamente por isso), parece possível estabelecer paralelos entre prescrição e segurança jurídica: ao mesmo tempo em que é preciso tempo para que pretensões sejam devidamente amadurecidas e exercidas com algum grau de reflexão e densidade, é preciso que tal elemento (o tempo) também seja certo e definido, a fim de que, tanto quanto possível, haja alguma previsibilidade na aplicação da lei, trazendo conforto e segurança aos usuários do sistema. Pudesse o elemento ser eliminado do processo de tomada de decisão daquele que almeja controverter em juízo, de certo que haveria pouca (ou nenhuma) estabilidade nas relações humanas, sujeitas que estariam a revisões ou a discussões judiciais ad aeternum.
Previsões acerca da prescrição estão abarcadas nos artigos 205 e 206 do Código Civil, os quais, grosso modo, delimitam, respectivamente, o prazo geral prescricional decenal (quando a lei não fixar prazo menor) e o prazo prescricional específico para determinadas situações da vida (variando de um a cinco anos, a depender da natureza da pretensão).
Se por um lado há regras postas, por outro, nem sempre é claro o prazo prescricional aplicável em concreto, havendo situações em que a definição sobre a incidência do prazo pode se tornar atividade tormentosa ao intérprete. Esse, aliás, tem sido um dos principais enfoques da atuação do Superior Tribunal de Justiça (STJ) nos últimos anos, em que, talvez buscando fazer jus à promessa trazida com o Código de Processo Civil de 2015 rumo à uniformização da jurisprudência pátria e a um (ainda incipiente) “sistema brasileiro de precedentes” estável, íntegro e coerente, tem firmado entendimentos vinculantes no que toca a prazos prescricionais incidentes sobre tal ou qual situação da vida.
Para o que importa a estas brevíssimas reflexões, tem-se que, mais recentemente, a partir da compreensão de que haveria diferenças “de ordem fática, de bens jurídicos protegidos e de regimes jurídicos aplicáveis entre responsabilidade contratual e extracontratual” [1], o STJ passou a atribuir às controvérsias relacionadas à responsabilidade contratual a regra geral de prescrição decenal. Certo ou errado (e aqui não se pretende tratar disso), fato é que, a partir da consolidação deste novel entendimento, tem-se visto espécie de “onda revisionista” no âmbito daquela Corte Superior, alterando-se entendimentos até então consolidados (num passado relativamente curto, por sinal). Tal onda, aliás, já vem afetando diferentes segmentos de mercado, notadamente o de serviços de TV por assinatura (cf. REsp 1.951.988/RS); setor médico (cf. REsp 1.756.283/SP); administração de carteira de investimentos (cf. EREsp 1.280.825/RJ); gestão imobiliária (cf. REsp 1.846.331/DF); telefonia fixa (cf. EREsp 1.523.744/RS, EAREsp 622.503/RS e EREsp 1.526.869/RS); assistência funerária (cf. REsp 1.708.326/SP); saneamento básico (cf. REsp 1.532.514); e restituições previdenciárias (cf. EREsp 1.838.337/SP), dentre outros.
Especificamente para a construção civil, houve a recente instauração de procedimento de revisão do Tema 938/STJ, cujo entendimento, firmado em 6/9/2016, considerava ser trienal o prazo para exercício da “pretensão de restituição dos valores pagos a título de comissão de corretagem ou de serviço de assistência técnico-imobiliária (SATI), ou atividade congênere“. Discute-se, agora, a possibilidade de revisão do entendimento, de modo a se considerar o prazo prescricional decenal para pretensões dessa natureza. Sob enfoque semelhante, também está na mira do STJ o julgamento o Tema 1.099/STJ, em que se busca firmar entendimento acerca do “prazo prescricional aplicável à pretensão de restituição da comissão de corretagem na hipótese de resolução do contrato por culpa da construtora/incorporadora, em virtude de atraso na entrega do imóvel”; se de três ou de dez anos.
Lado outro, também chegou a vez dos planos de saúde: encontra-se em pauta de julgamento Questão de Ordem na qual se discute a (im)pertinência de se revisar o entendimento outrora firmado no sentido de que seria trienal o prazo prescricional aplicável a pretensões envolvendo revisões de cláusulas contratuais de planos de saúde em que haja previsão de reajuste e consequente ressarcimento em razão de eventual repetição de indébito. O julgamento de tal Questão de Ordem, por sua vez, estava originalmente pautado para ocorrer no dia 26/10/2022, mas foi adiado em razão de pedido de vista do ministro João Otávio de Noronha.
Firmada a premissa de que prescrição e segurança jurídica são assuntos conexos, parece lícito concluir que o estabelecimento de regras claras sobre aquela (e/ou a reafirmação das já existentes, já que não cabe ao Poder Judiciário criar, mas apenas interpretar e aplicar a Lei) projeta efeitos na compreensão que se tem desta. Afinal, e como anotou Gustavo Franco, “se os fatos (e a compreensão jurídica que se tem sobre eles ao longo do tempo) nunca estão acabados, e podem sempre ser reescritos (às vezes com frequência exagerada), não existe História, apenas versões”.
Daí porque, uma coisa parece ser certa: o porvir já suscita grandes debates, que, embora emergentes do Direito, vão muito além das fronteiras jurídicas. Nesse sentido, qualquer alteração do atual entendimento vigente poderá acarretar consideráveis consequências jurídicas (sem dúvidas), mas também sociais e econômicas, o que, aliás, é intuitivo: de três para dez anos há uma distância razoável. No mundo pós-moderno, permeado pela “justaposição e fragmentação de valores, turboconsumismo e insatisfação existencial” [2], fica a indagação: quando o passado efetivamente se torna História?
De Roma para o Brasil, muito mais que “apenas” alcançar os direitos dos que não dormem, o brocardo alhures rememorado talvez precisasse ser complementado com frase atribuída à Pedro Malan (batida, é verdade, mas que, aparentemente, tornou-se crônica indelével da realidade brasileira): “no Brasil, o futuro é duvidoso e o passado é incerto“.
[1] Cf. EREsp 1.280.825/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, 2ª S., j. 27/6/2018.
[1] Cf. Marco Fábio Morsello. Análise categorial dos contratos existenciais e de lucro. Estudos em homenagem a Clóvis Beviláqua por ocasião do centenário do direito civil codificado no Brasil. São Paulo, Escola Paulista da Magistratura, 2018, p. 527.
Autor: Daniel Luiz Yarshell e Bianca Lereno