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24/11/22

O devido processo legal nas escolas e nas universidades

Apreciadores de cinema talvez se lembrem do filme “Os intocáveis”, drama policial (1987), dirigido por Brian de Palma, baseado em livro homônimo (1957), conduzido sobre relato autobiográfico do agente federal Eliot Ness e seu esforço para conter e reprimir a criminalidade em Chicago, quando vigente a assim chamada Lei Seca.

Depois da dura constatação de que a polícia local fora corrompida, o que levou ao recrutamento diferenciado de policiais (os que dão o título à obra), todos rumam para uma operação de apreensão de bebida na fronteira com o Canadá, com a ajuda da polícia local. Desbaratada a ação dos criminosos, a cena seguinte se passa em uma cabana, ainda nas proximidades e na mesma sequência temporal, na qual os policiais – americanos e canadenses – estão reunidos e os primeiros interrogam o encarregado da contabilidade do comércio ilegal, preso na operação.

Ele se recusa a responder e age de forma irônica e desafiadora, na aposta de sua própria impunidade. Frustrado, um dos policiais da equipe de Ness vai para a parte externa da cabana e levanta o cadáver de um dos criminosos morto no prévio tiroteio, encostando-o contra a parede e agindo como se ele ainda estivesse vivo, fazendo-lhe perguntas. De dentro da cabana, o renitente apenas ouve a fala do policial, sem saber que o interrogando já estava morto. O policial dá um ultimato ao cadáver, enfia o cano do revólver em sua boca e, diante do silêncio, dispara, estourando-lhe os miolos. Imediatamente, o contador se dispõe a prestar todo e qualquer esclarecimento necessário. Sem saber o que efetivamente se passara, o policial canadense chama Ness de lado e lhe diz: “Sr. Ness, não aprovamos seus métodos…”; ao que ele responde: “Isso é porque você não é de Chicago”.

Cada qual faça sua interpretação da cena, que, de qualquer forma, é apenas parte de uma obra de ficção. O que dela fica, contudo, é a lembrança de um dilema clássico: como combater a criminalidade selvagem de forma civilizada? Se a medida ficar aquém, a criminalidade vence; se for além, agentes da lei se transformam, eles próprios, em criminosos.

Para ficar na história recente, esse paradoxo foi ilustrado pelo combate a ações terroristas ao ensejo do ataque de 11 de setembro de 2001 – Guantánamo e o assim chamado Direito Penal do inimigo que o digam. E, de certa forma, é o que ocorre hoje entre nós: como combater milícias digitais e movimentos organizados à disseminação de notícias falsas ou voltados à propagação de discurso de ódio, dentre outros, sem atentar contra a liberdade de expressão e mesmo contra o patrimônio (vide apreensões de ativos financeiros dos acusados)?

Onde está a fronteira que separa o direito de divulgar opinião e crítica, de um lado, da informação distorcida e potencialmente danosa à democracia, de outro? Quem tem a prerrogativa de fazer essa distinção e, mais do que isso, quem consegue fazê-lo de forma operacionalmente eficiente? Qual o papel das plataformas e do Judiciário nesse controle?

Embora ainda não haja respostas satisfatórias para tais relevantes indagações, uma coisa é certa: fora do âmbito do devido processo legal dificilmente haverá solução não apenas civilizada, mas que seja também eficiente – sim, porque, embora soluções arbitrárias possam aparentemente satisfazer necessidades imediatas (peço ao leitor que se disponha a assistir a cena acima mencionada, que analise, com honestidade, suas próprias emoções diante do tiro que estraçalha a cabeça do cadáver do criminoso), no médio ou longo prazo elas tendem a se voltar contra aqueles que se reputavam protegidos e, claro, implodem as bases de qualquer convívio civilizado. Diante dos dilemas apresentados, observar o devido processo legal pode até não ser garantia de resultado substancialmente justo; mas a falta de sua observância, contudo, certamente será fonte de iniquidades.

Tudo isso foi dito porque dilemas dessa natureza podem estar mais próximos de nossas vidas do que pensamos. Então, todos que se proclamam democratas e que dizem lutar pela democracia, talvez sejam – direta ou indiretamete, por ação ou por omissão, consciente ou inconscientemente, até mesmo e paradoxalmente com ótimas intenções – responsáveis por ataques à democracia. É o que ocorre quando, a pretexto de reagir energicamente à ilicitude, age-se sem atenção ao Estado de Direito e ao devido processo legal. É o que, por exemplo, pode ocorrer na repressão de atos praticados por alunos ou alunas, no âmbito das escolas e universidades.

Nos Estados Unidos, esse tema é objeto de sério debate ao ensejo do comportamento inadequado ou ilegal de estudantes, em relações pessoais – aí incluídas as sexuais. Para ilustrar, o prestigioso e renomado American Law Institute, no Encontro Anual realizado neste ano de 2022, debateu o tema dos princípios jurídicos e os parâmetros processuais aplicáveis diante de tais condutas, no âmbito das instituições de ensino. Pontos delicados como adoção de medidas de urgência, conteúdo e forma da denúncia de má conduta, maneiras informais e formais de resolução dos conflitos, investigação, colheita de provas (aí incluído o direito de o indigitado ofensor arguir a sedizente vítima), confidencialidade, revelação e deturpação de fatos, retaliação e outros foram objeto de texto levado ao plenário e debatido com seriedade e proveito.

Salvo melhor juízo, esse é um assunto cujo amadurecimento no Brasil sequer começou. Por aqui, aparentemente, ainda estamos propensos a agir no calor da emoção, sob o impulso do clamor popular – o que é agravado pela muita discutível representatividade de manifestações em redes sociais, canais cuja legitimidade é inegável, mas que estão sujeitas, eles próprias, não apenas a eventuais distorções e manipulações verificáveis em ambientes digitais, mas aos dilemas e paradoxos axiológicos de que acima se falou.

Então, diante do que se possa em tese qualificar como más condutas de alunos, a pior solução possível será a de tomar decisões – sejam elas absolutórias ou, pior ainda, condenatórias – sem a devida ponderação e, principalmente, sem que seja rigorosamente observado o devido processo legal – que inclui a estrita observância do contraditório e da ampla defesa; que exige decisões adequadamente motivadas; tomadas por agente equidistante do conflito. E não se trata de consagrar formalidades – argumento usualmente adotado por quem ou desconhece o que é democracia ou ignora a função que o processo desempenha no controle do exercício de poder, qualquer que seja ele. Não é “apenas” o devido processo legal que está em jogo.

É preciso considerar, por exemplo, que determinadas infrações não podem ser simplesmente tratadas como ilícitos sancionáveis, pela circunstância relevante da inimputabilidade decorrente da idade dos estudantes. Isso não significa dizer que más condutas não devam ter consequências, mas sim que elas precisam ter resposta adequada à pessoa do infrator. Ou será coerente que defendamos uma idade para a maioridade penal, como postulado democrático, de um lado; e que, de outro lado, simplesmente  a desconsideremos se e quando assim o exigir o clamor popular?

No mínimo, é preciso haver coerência. Portanto, se é de crianças e adolescentes que se está a falar, parece razoável pensar que, antes de punir, é preciso tentar reeducar, se e quando for o caso. Também é preciso considerar todos os aspectos acima mencionados, debatidos fora daqui; e, especialmente, ter em mente as consequências que tal ou qual punição possam ter para quem apenas começa a vida. Ou será justo, em nome da gravidade da ofensa, aplicar-se a pessoas juridicamente inimputáveis sanções capazes de as estigmatizar para o resto da vida? Nem inércia, nem justiciamento.

Que as presentes considerações – aí incluídas as reflexões colhidas a partir de experiências no Exterior – possam, sem tomar este ou aquele episódio em particular, servir de convite a mais profundo e sério debate sobre o devido processo legal nas Escolas e nas Universidades, inclusive para que isso não precise chegar ao Poder Judiciário.

 

Para ler na integra clique aqui.

Autor: Flávio Yarshell

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