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12/05/23

Corte Especial do STJ define critérios para penhorabilidade de salários em pagamento de dívida não alimentar

Em 19 de abril de 2023, na 5ª Sessão Ordinária da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”), foi dado provimento, por maioria de votos, aos Embargos de Divergência nº 1.874.222/DF para fixar a tese de que, em caráter excepcional, é possível relativizar a regra da impenhorabilidade das verbas de natureza salarial para pagamento de dívida não alimentar independente do montante recebido pelo devedor, desde que preservado valor que assegure subsistência digna para si e família. Votaram nesse sentido, acompanhando o Ministro Relator João Otávio de Noronha, os Ministros Humberto Martins, Herman Benjamin, Og Fernandes, Ricardo Villas Bôas Cueva, Francisco Falcão, Nancy Andrighi e Laurita Vaz. Foram vencidos, contudo, os Ministros Raul Araújo, Luis Felipe Salomão, Mauro Campbell Marques, Maria Isabel Gallotti e Antonio Carlos Ferreira.

Referidos Embargos de Divergência têm como origem o acórdão da 4ª Turma do STJ (AgInt no REsp nº 1.874.222/DF), de relatoria do Ministro Raul Araújo, que indeferiu o pedido de penhora de 30% do salário do lá executado, que correspondia a R$ 8.500,00, para satisfazer dívida de R$ 110.000,00. Naquela ocasião, a 4ª Turma havia entendido que a jurisprudência do STJ somente autorizava a relativização da regra de impenhorabilidade nas hipóteses previstas no parágrafo 2º do art. 833 do CPC, quais sejam: (i) pagamento de prestação alimentícia, de qualquer origem, independentemente do valor da verba remuneratória recebida; e (ii) pagamento de qualquer outra dívida não alimentar, quando os valores recebidos pelo executado forem superiores a 50 salários-mínimos mensais, ressalvando-se eventuais particularidades do caso concreto, ainda, que em ambas as situações mencionadas deve-se preservar percentual capaz de dar guarida à dignidade do devedor e de sua família.

Por conter tal acórdão tese contrastante com acórdãos prolatados tanto pela Corte Especial quanto pela 3ª Turma do STJ (EREsp nº 1.582.475/MG e RESP nº 1.547.561/SP), o Relator Ministro João Otávio de Noronha reconheceu a divergência apontada e admitiu os Embargos. Em seu voto, consignou que o novo CPC, ao tratar da impenhorabilidade no art. 833, IV[1], diferentemente do art. 649 do CPC/73[2], suprimiu a palavra “absolutamente”, de modo a permitir compreensão de que tal regra poderia ser mitigada. Em sua visão, por meio de um julgamento principiológico, “o julgador, ponderando o princípio da menor onerosidade para o devedor e da efetividade da execução para o credor, concede a tutela jurisdicional mais adequada a cada caso, em contraponto a uma aplicação rígida e linear e inflexível do conceito de impenhorabilidade. Esse juízo de ponderação em que os princípios simultaneamente incidentes na espécie há de ser solucionado a luz da dignidade da pessoa humana que, diga-se de passagem, resguarda tanto o dever do devedor quanto do credor, mediante o emprego dos critérios da razoabilidade e proporcionalidade”.

Em outras palavras: em consonância com as teses fixadas nos acórdãos divergentes, entendeu o Ministro Relator, seguido pelo colegiado, que a impenhorabilidade dos salários teria por fundamento a proteção à dignidade do devedor, com a manutenção do mínimo existencial, mas que tal direito deve ser ponderado vis a vis do direito à efetividade da execução conferido ao credor. O acórdão consignou que a “fixação desse limite de 50 salários-mínimos merece críticas, na medida em que se mostra muito destoante da realidade brasileira, tornando o dispositivo praticamente inócuo, além de não traduzir o verdadeiro escopo da impenhorabilidade, que é a manutenção de uma reserva digna para o sustento do devedor e de sua família”. Por isso, concluiu a Corte Especial do STJ pela relativização do parágrafo 2º do artigo 833 do CPC, autorizando a penhora de verba salarial abaixo de 50 salários-mínimos para satisfação de crédito de qualquer natureza, desde que assegurado montante que garanta a dignidade do devedor e de sua família.

O lado vencido foi representado pelo voto do Ministro Raul Araújo, que entendeu que as hipóteses de exceção à impenhorabilidade já estariam bem delineadas na jurisprudência do STJ, notadamente no acórdão embargado. Segundo seu voto, a ponderação principiológica realizada para a manutenção do mínimo existencial já havia sido realizada tanto no acórdão embargado, que era de sua relatoria, como no acórdão de origem, alvo do apelo especial, dando ênfase ao fato de que dar provimento aos Embargos de Divergência significaria, ao seu ver, estender sobremaneira os critérios de análise do caso concreto já postos pelo legislador.

Compatibilizando sua posição no caso concreto com a possibilidade de mitigar as hipóteses de impenhorabilidade, o Ministro destacou que ambos os acórdãos (de origem e embargado) concluíram que a penhora de 30% de um salário de R$ 8.500,00 caracterizaria situação de incompatibilidade com os princípios que norteiam a regra geral de vedação à impenhorabilidade de vencimentos, na medida em que levariam muitos anos para satisfazer o débito exequendo, ao passo que isto privaria o devedor de parte substancial de seu salário.

Divergindo tanto do Ministro Relator, quanto do Ministro Raul Araújo, o Ministro Og Fernandes, por sua vez, votou por não dar seguimento aos Embargos de Divergência por incidência da Súmula 315/STJ[3]. Em seu entender, o caso em análise se mostraria de relevância ímpar para o jurisdicionado em geral, de forma que a posição mais adequada seria tratar do tema pela sistemática dos recursos repetitivos. Vencidos, acompanharam esse entendimento os Ministros Luis Felipe Salomão, Mauro Campbell Marques e Antonio Carlos Ferreira.

Faz-se aqui um adendo para pontuar a ressalva feita pela Ministra Isabel Gallotti, que entendeu que a origem da divergência reside na impossibilidade de definir objetivamente o que seria “mínimo existencial”, conceito muito vago em sua opinião. A Ministra acompanhou o voto do Ministro Raul Araújo, ressaltando que é a particularidade do caso concreto que define a possibilidade de penhora de salário para pagamento de dívida não alimentar.

Atualmente, aguarda-se a disponibilização dos votos e a íntegra do acórdão. Como se trata de discussão interessante e que afeta a comunidade jurídica, merece acompanhamento.

[1] “Art. 833. São impenhoráveis: (…) IV – os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, ressalvado o § 2º; (…). § 2º O disposto nos incisos IV e X do caput não se aplica à hipótese de penhora para pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem, bem como às importâncias excedentes a 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais, devendo a constrição observar o disposto no art. 528, § 8º , e no art. 529, § 3º”.

[2] “Art. 649. São absolutamente impenhoráveis: (…)”.

[3] “Não cabem embargos de divergência no âmbito do agravo de instrumento que não admite recurso especial”.

Autor: Viktor Smith e Lucas Campanhã

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