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06/11/23

Autonomia do dever de revelação: confiança é elemento central da arbitragem

Inegavelmente, o tema do “dever de revelação” dos árbitros no contexto do processo arbitral vem se tornando tema central de debates quer no âmbito acadêmico, quer no âmbito jurisprudencial.

A ausência de balizas objetivas quanto à caracterização de “fato que denote dúvida justificada” sobre a imparcialidade e independência suscita muitas questões. Apenas para exemplificar, sem prejuízo de outras: (1) extensão do dever de revelação; (2) existência, ou não, de um dever ativo de buscar informações pelas partes como forma de reduzir o rigor do dever de revelação dos árbitros; (3) preclusão, ou não, caso a matéria não seja aventada dentro da arbitragem; (4) aplicabilidade, ou não, de diretrizes internacionais e nacionais de soft law sobre a matéria; e (5) possibilidade, ou não, de que uma sentença arbitral seja anulada com base, exclusivamente, em violação do dever de revelação.

Dentro dos limites deste artigo, assumidamente abreviado e com intenção de introduzir a compreensão dos autores sobre o tema, será abordado apenas o último dos itens acima destacados. A questão por ele ventilada é a seguinte: considerando que o dever de revelação, por expressa dicção legal, está associado a fatos que denotem dúvida justificada quanto à imparcialidade e independência, seria correto vislumbrar em sua violação uma causa autônoma para anulação da sentença arbitral, ou se exigiria também a efetiva quebra de imparcialidade e independência detectadas a partir do fato não revelado?

Para tratar das bases do dever de revelação, é preciso dar um passo atrás. A formação do tribunal arbitral, composto que é por agentes privados, necessariamente reflete um conceito de confiança recíproca entre partes e árbitros que são escolhidos ao exercício da função. Logo, e não havendo a presunção de neutralidade que repousa no Estado-juiz (terceiro institucionalizado) [1], é preciso demonstrar que a pessoa indicada para ser árbitro é digna da confiança das partes, inclusive (e talvez de forma ainda mais compreensível) em relação à parte que não a indicou. Tal aspecto é inerente à própria legitimação do processo arbitral [2].

Mas, para saber se há confiança entre os árbitros indicados, é preciso fornecer às partes todos os elementos para que elas possam tomar uma decisão informada [3]. Do contrário, dificilmente se poderia dizer que houve aceitação livre e voluntária de tal ou qual árbitro, uma vez que a parte agiu e formou seu juízo com base em um cenário incompleto ou impreciso de informações. E justamente neste contexto se insere o dever de revelação, como uma decorrência lógica e necessária da relação de confiança que deverá permear a relação arbitral.

Portanto, embora seja evidente que o dever de revelação esteja relacionado à imparcialidade/independência por densificar tais garantias — porque viabiliza que a parte reconheça eventual falta desses atributos a partir de informações antes desconhecidas — é forçoso reconhecer que seu fundamento e legitimação estão calcados em um outro aspecto: a tutela da confiança das partes na arbitragem. Um árbitro que não revele fato relevante, pode até ser imparcial, mas certamente não é confiável aos olhos das partes.

A própria legislação, ao estabelecer a existência desse dever, preceitua que o fato deve denotar “dúvida justificada” quanto à imparcialidade, mas não que deva comprometer a imparcialidade, deixando claro que o fundamento do dever é outro. Sendo assim, aparentemente, o Legislador não se importou em condicionar que fato ou circunstância deveria ter sido revelada precisaria influir, em alguma medida, nas capacidades de independência ou imparcialidade do julgador. Antes disso, o fundamento do dever de revelação é a própria relação de estrita confiança das partes para com os árbitros.

Isso tudo leva a crer na quebra do dever de revelação como um fundamento autônomo para anulação da sentença arbitral, relacionado à própria capacidade de ser árbitro (LArb, artigo 32, II). Até porque, o contrário — entender que o dever de revelação teria função meramente acessória/instrumental do dever de imparcialidade e, portanto, não seria capaz de isoladamente ensejar a anulação de uma sentença — tornaria o dever de revelação virtualmente inútil no ordenamento jurídico. Afinal, ou bem houve quebra da imparcialidade e a violação do dever de revelação foi inócua, porquanto existente fundamento próprio para anulação da sentença proferida por juiz parcial (LArb, artigo 32, VIII), ou bem não houve quebra da imparcialidade e a violação do dever de revelação foi igualmente inócua, porque a sentença arbitral seguiu produzindo seus regulares efeitos.

Logo, retirar a autonomia do dever de revelação como fundamento para anulação da sentença faria questionar sobre quais seriam as consequências decorrentes de sua violação, se é que haveria alguma. E isso, por sua vez, colocaria em dúvida a própria natureza jurídica de tal dever, que mais se assemelharia a um conselho ou diretriz de boa prática pelos árbitros.

A partir da indicação dos conceitos acima demonstrados, parece certo que o dever de revelação exsurge como uma garantia autônoma, a qual visa a tutelar direta e precisamente a confiança no bojo do processo arbitral. Trata-se, assim, de garantia fundamental do processo arbitral, de forma que o dever de revelação se constitui, autonomamente, como elemento bastante para indicar eventual falta de higidez do processo arbitral.

Em outras palavras, parece que não há necessidade de que ao dever de revelação seja “somado” qualquer outro dever ou princípio que o justifique. Afinal, a revelação remete a uma condição informacional das partes, sendo de tal forma relevante que eventuais fatos não revelados poderão macular a confiança das partes quanto à higidez daquele que julga o seu litígio. Desse modo, a inobservância dessa garantia seria suficiente para que todo o processo arbitral realizado seja colocado em xeque.

Assim, apesar da subjetividade e do casuísmo próprio da identificação desses “fatos relevantes” (o que, como se viu, é questão diversa relacionada à extensão desse dever), a anulação de sentença arbitral baseada na violação ou inobservância do dever de revelação decorre de uma lógica eminentemente formal. Isto porque, basta a identificação de um fato relevante que não tenha sido revelado, para que esta inobservância do dever culmine em causa autônoma da nulidade do processo arbitral.

Portanto, a interpretação subjetiva/casuística está no passo imediatamente anterior, isto é, na verificação de quais são os fatos relevantes e que deveriam ser efetivamente revelados. Uma vez que eles sejam identificados, caso não ocorra a revelação às partes sobre tal fato, objetivamente parece ser possível anulação da sentença arbitral, independentemente de ter havido, ou não, efetivo comprometimento da imparcialidade ou independência do julgador.

Em recentes julgados do TJ-SP, parece ter sido nesse exato sentido que recentemente foram anuladas sentenças arbitrais, em razão da inobservância do dever de revelação dos árbitros no curso da arbitragem, sem sequer haver necessidade quanto à verificação, ou não, da quebra de imparcialidade/independência. No primeiro deles, considerou-se que “os fatos extemporaneamente revelados denotam dúvida objetiva quanto à imparcialidade do árbitro, a ensejar a nulidade da sentença arbitral” [4], de relatoria do il. desembargador Grava Brazil. Já no outro, nos termos do voto do il. desembargador relator Maurício Pessoa, reconheceu-se que a normativa do artigo 14, §1º da Lei de arbitragem se trata de um comando para verificar “se o fato, de acordo com as circunstâncias do caso, pode provocar no espírito das partes dúvida fundada sobre a imparcialidade e a independência do árbitro, independentemente da prova da parcialidade do árbitro que, aqui, não é exigível” [5].

Esse entendimento, respeitadas opiniões em sentido contrário, parece, mesmo, o mais correto, sendo coerente com o seu fundamento e com a valorização dessa garantia dentro do sistema que a anulação da sentença por violação ao dever de revelação prescinda de qualquer demonstração de parcialidade ou quebra de independência por parte do árbitro.


[1] Cf. Tercio Sampaio Ferraz Junior, Suspeição e impedimento em arbitragem: sobre o dever de revelar na Lei 9.307/1996, Revista de Arbitragem e Mediação: RArb, v. 8, n. 28, jan/mar. 2011, p. 65/82.

2 Cf. Pedro A. Batista Martins, Dever de revelar do árbitro, Revista de Arbitragem e Mediação, vol. 36, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2013. p. 219; grifamos.

3 Cf. Carlos Alberto Carmona, Arbitragem e processo: um comentário à lei nº 9.307/96, 3ª ed., São Paulo, Atlas, 2009, pp. 275; grifamos.

4 Voto do il. des. rel. Grava Brazil nos autos do agravo de instrumento de autos nº 2272139-63.2022.8.26.0000.

5 Voto do il. des. rel. Maurício Pessoa no julgamento da apelação de autos nº 1116375-63.2020.8.26.0100

Autor: Por Eduardo de Carvalho Becerra e Arthur Fernandes Coelho

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