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14/04/23

As recentes mudanças legislativas e a penhora de criptoativos

Em dezembro de 2022 foi sancionada a Lei nº 14.478/22, conhecida como Lei das Criptomoedas, que dispõe sobre as diretrizes a serem observadas na prestação de serviços relativos a ativos virtuais e na regulamentação das prestadoras desses serviços, também chamadas de exchanges.

A nova lei define ativo virtual como “representação digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos e utilizada para realização de pagamentos ou com propósito de investimento” (artigo 3º, caput), excluindo a moeda nacional e moedas estrangeiras, moedas eletrônicas, pontos e recompensas de programas de fidelidade e ativos previstos em outras leis e regulamentos.

Já as prestadoras de serviços de ativos virtuais são as pessoas jurídicas que, em nome de terceiros, executam pelo menos um dos serviços de ativos virtuais listados nos incisos do artigo 5º. Essas exchanges poderão ainda realizar outros serviços mediante autorização de órgão ou entidade pública federal, conforme espera-se ser editado ato pelo Poder Executivo.

Também caberá ao Poder Executivo a indicação de um ou mais órgãos ou entidades para a gestão das prestadoras de serviços de ativos digitais, que cuidarão desde a autorização de funcionamento até a supervisão dos serviços (artigo 7º e incisos).

Para além dessas diretrizes gerais, outros dispositivos interessantes dizem com crimes já tipificados na legislação brasileira, mas especificamente praticados com criptomoedas (artigos 10, 11 e 12).

O artigo 13 da nova lei determina a aplicação do Código de Defesa do Consumidor às operações conduzidas no mercado, mas somente naquilo que couber. A abertura sobre a aplicabilidade da norma certamente demandará dos advogados, promotores, juízes e intérpretes no geral um maior cuidado no manuseio e aplicação da lei, especialmente porque, como se sabe, operações envolvendo a compra e venda de ativos sofisticados podem não envolver uma relação de consumo.

Ainda no tocante à regulamentação dos criptoativos, pende de aprovação parlamentar um Projeto de Lei (o PL nº 1.600/22) que, dentre outros dispositivos, altera o Código de Processo Civil de forma a fazer constar expressamente a possibilidade de penhora de criptoativos. Para isso, o projeto acrescenta o inciso XIV ao artigo 835, definindo os criptoativos como “representações digitais de valor que, não sendo moeda, possuam unidade de medida própria, negociados eletronicamente por meio da utilização de criptografia e no âmbito de tecnologias de registro distribuído, utilizados como ativo financeiro, meio de troca ou pagamento, instrumento de acesso a bens e serviços ou investimento”.

A permissão expressa de penhora de criptoativos para a satisfação de créditos, contudo, não implicará acesso à chave privada pelo Poder Judiciário (proposta para o novo artigo 835, §4º, I). Com efeito, a transferência será feita voluntariamente à Justiça pelo executado ou, em cumprimento a ordem judicial, pela exchange — o que poderá se dar sem a ciência prévia do devedor (artigo 835, §4º, III, “a” e IV). Para custodiar os ativos, o Poder Judiciário terá uma carteira virtual (art. 835, §5º).

A promulgação das normas que acima se tratou, para regulamentar na prática a penhora de criptoativos, pode trazer benefícios à efetividade de medidas constritivas nessa seara. Contudo, é igualmente relevante dizer que a novel regulamentação e aquela projetada não trazem disposições mais específicas sobre como se dará a efetivação da medida constritiva em termos práticos.

Para ilustrar, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo há algum tempo já vinha reconhecendo a penhorabilidade de criptoativos. Contudo, muito se discutia sobre a necessidade de demonstração de sua existência e titularidade do devedor, diante da inexistência de sistema centralizado. De um lado, havia Câmaras que entendiam não ser o caso de expedição de ofícios e ordens indiscriminadas a toda e qualquer prestadora de serviços relacionados a ativos virtuais [1].

De outro lado, havia decisões que entendiam ser possível a expedição de ofício às corretoras de criptoativas reguladas pelo Banco Central e abarcadas pelo Sisbajud [2], ou mesmo às corretoras não abrangidas pelo sistema [3]. Com efeito, a despeito de falar em “expedição de ofício, por meio eletrônico, aos intermediários envolvidos em operações com criptoativos” (artigo 835, §4º, III), persiste a falta de clareza encontrada na jurisprudência sobre quais exchanges poderiam ser oficiadas. O PL tampouco é claro quanto à exigência de prova de existência de criptoativos ou da possibilidade de se proceder com a pesquisa prévia por sistema eletrônico por parte do juízo.

Quanto à conversão dos criptoativos em pecúnia, a proposta legislativa determina que a lavratura do termo de penhora, com a quantificação dos ativos e seu respectivo protocolo, se dará quando do recebimento dos criptoativos pela carteira virtual do Poder Judiciário (artigo 835, §5º), e o parágrafo seguinte determina que “A Fazenda Pública poderá requerer a complementação da penhora na hipótese em que a volatilidade dos criptoativos deixar de corresponder ao valor executado”, podendo, após abertura do contraditório, o juízo determinar a conversão dos criptoativos em fidúcia ou a intimação do devedor para complementação ou substituição da garantia.

Considerando a alta volatilidade dos ativos virtuais, talvez andasse bem o PL se desde logo se fixasse um momento para sua liquidação, evitando-se a manutenção dos criptoativos em sua carteira virtual por muito tempo. Outra crítica que se pode fazer diz com a restrição do direito de pleitear a complementação da penhora, por força da volatilidade, à Fazenda Pública: a eventual complementação da penhora, se autorizada — e há dúvidas se realmente tal autorização para um bem cujo valor monetário é naturalmente variável seria adequada —, deveria se dar em benefício de qualquer credor e não apenas da Fazenda Pública.

É certo que a maior ou menor regulamentação da matéria e do mercado sempre levanta uma série de debates, inclusive de cunho político e filosófico. Há aqueles que entendem que o Estado deve ser mais presente e aqueles que são contra. Independentemente da corrente a que se filia o leitor, uma coisa parece ser certa de se afirmar: as recentes e projetadas normas prometem conferir maior segurança jurídica às operações ou, quando menos, fomentar o debate acerca dessa questão de importante ferramenta. Contudo, em matéria de penhora de criptoativos, ainda parece existir mais dúvidas do que certezas a respeito de quais são os caminhos práticos que devem ser seguidos para o fim de tornar a medida útil. A ver!

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[1] Cf. TJ-SP, 36ª Câm. Dir. Priv., AI n. 2202157-35.2017.8.26.0000, rel. des. Milton Paulo de Carvalho Filho, j. 21.11.2017, p. 21.11.2017, v.u.; TJ-SP, 10ª Câm. Dir. Priv., AI n. 2173523-24.2020.8.26.0000, rel. des. Elcio Trujillo, j. 28.10.2020, p. 28.10.2020, v.u.

[2] Cf. TJ-SP, 11ª Câm. Dir. Priv., AI n. 2047347-63.2021.8.26.0000; rel. des. Renato Rangel Desinano, j. 30.4.2021, p. 30.4.2021, v.u.; TJ-SP, 11ª Câm. Dir. Priv., AI n. 2050696-74.2021.8.26.0000, rel. des. Renato Rangel Desinano, j. 14.6.2021, p. 14.6.2021, v.u.

[3] Cf. TJ-SP,29ª Câm. Dir. Priv., AI n. 2040887-60.2021.8.26.0000; rel. des. Carlos Henrique Miguel Trevisan, j. 29.6.2021, p. 29.6.2021, v.u.; TJ-SP, 21ª Câm. Dir. Priv., AI n. 2039628-30.2021.8.26.0000, rel. des. Ademir de Carvalho Benedito, j. 29.7.2021, p. 29.7.2021, v.u.

Autor: Por Rafael Stefanini Auilo e Maria Luísa de Souza Bruschi

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