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20/02/24

Projeto de reforma do Código Civil: alterações e perspectivas

No final de 2023, o Senado Federal criou uma Comissão de juristas com a finalidade de discutir e apresentar, no prazo inicial de 180 dias, o anteprojeto de Lei para revisão e atualização do Código Civil (Lei nº 10.406/2002), a qual é presidida pelo Ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça, e conta atualmente com 38 membros da magistratura, advocacia, Ministério Público e academia, dentre os quais outros Ministros do STJ, além de já conhecidos professores de direito civil, como Rosa Maria de Andrade Nery e Flávio Tartuce.

 

Para expandir os debates e levantar subsídios ao escopo final, a Comissão disponibilizou e-mail para o envio de sugestões pela sociedade civil, em especial a comunidade jurídica, sendo que, a partir disso, foram realizadas três audiências públicas, todas transmitidas pela TV Senado e liberadas no respectivo canal no Youtube. Em dezembro de 2023, foi deliberada a realização de uma última para fevereiro deste ano, que contará com a presença do Ministro da Suprema Corte da Argentina, Ricardo Lorenzetti.

 

Nessa primeira fase do projeto, já foram apresentados relatórios parciais e setoriais[1], que renderam mais de 1800 páginas e englobam os seguintes temas/livros: parte geral, obrigações, responsabilidade civil e enriquecimento sem causa, contratos, direito empresarial, das coisas, de família, das sucessões, digital, e títulos de créditos. Os textos serão votados pela comissão no mês de abril, para, então, haver a deliberação e consolidação da versão final do anteprojeto de Lei. De acordo com o calendário aprovado pela comissão, o documento deve ser entregue ao Senado em 11 de abril.

 

Pela análise dos relatórios parciais que estão disponíveis na página do Senado é possível afirmar que são muitas as mudanças propostas (ainda submetidas a votação). Dá-se destaque para:

 

Direito Digital: a proposta de criação desse novo Livro dentro do Código Civil é talvez uma das mais necessárias, pois facilita a identificação de tema que é atual e relevante. São propostos:

 

  1. O reconhecimento do direito à proteção da privacidade e dados pessoais enquanto direito da personalidade[2];
  2. A previsão e o reconhecimento da relação jurídica digital, através de atos jurídicos realizados de forma eletrônica[3], a fim de possibilitar a elaboração, revisão e extinção de tais através do ambiente digital, bem como a previsão sobre contratos eletrônicos (e sua equiparação das regras previstas aos contratos analógicos), com o objetivo de introduzir na legislação dispositivos específicos para a modalidade de contratação;
  3. O reconhecimento e regulamentação das assinaturas eletrônicas, validando-as como meio de manifestação da vontade para atos jurídicos em sentido amplo;
  4. O reconhecimento e validação da locação de “coisas” celebradas por meio de aplicativo digital[4];
  5. O reconhecimento e regulamentação para a prática de atos notariais eletrônicos; e
  6. O reconhecimento dos “ativos intangíveis” para fins patrimoniais (patrimônio digital), à exemplo dos “dados financeiros, senhas, contas de mídia social, ativos de criptomoedas, tokens não fungíveis ou similares, milhagens aéreas, contas de games e jogos cibernéticos, conteúdos digitais como fotos, vídeos, textos, ou quaisquer outros ativos digitais, armazenados em ambiente virtuais”.

 

Direito das Famílias: a primeira mudança proposta para esse Livro é percebida, de imediato, com a sugestão de alteração-ampliação do título “Direito de Família” para “Direito das Famílias”. A intenção é dar maior ênfase à pluralidade das entidades familiares e à liberdade para a constituição dos vínculos afetivos-familiares, independentemente de preceitos religiosos e culturais. À exemplo disso estão os artigos 1.514 e seguintes que, atualmente, preveem que o casamento se realiza no “momento em que o homem e a mulher manifestam” sua vontade perante o juiz, de modo que a proposta de alteração – mais inclusiva – estabelecerá, se aprovada, que o casamento “se realiza no momento em que duas pessoas manifestam a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o celebrante os declara casados”, havendo, ainda, no parágrafo único, expressa vedação à recusa na habilitação e celebração do casamento pelas autoridades, “sob pena de responsabilidade jurídica e administrativa”.

 

Direito das Sucessões: uma novidade proposta nesse Livro e que também traz aspectos do direito digital trata da possibilidade de transmissão hereditária dos “dados contidos em qualquer aplicação da internet[5] ser regulada por testamento ou contratos celebrados, garantido maior clareza e previsibilidade sobre quem poderá acessá-los e/ou monitorá-los. Além disso, o Livro propõe o reconhecimento da chamada “herança digital”, esclarecendo quais são os chamados “bens digitais[6], seus sucessores, e qual a limitação de acesso por eles às mensagens privadas do autor da herança difundidas ou armazenadas em ambiente virtual. Por fim, outra novidade proposta pela Comissão diz respeito ao direito sucessório aos filhos do autor da herança gerados “por técnica de reprodução humana assistida”, permitindo, inclusive, o reconhecimento do “direito sucessório aos filhos gerados após a abertura da sucessão, se nascidos no prazo de até 04 (quatro) anos a contar daquela data”[7], sendo que a concepção ou geração de filhos por técnica de reprodução humana assistida, concluída após a morte, depende da autorização expressa do autor da herança, por instrumento público ou testamento.

 

Da Responsabilidade Civil: as mudanças propostas para o Livro de Responsabilidade Civil também são bastante esperadas, inclusive em relação à era digital. Isso porque, diariamente se vê debates e discussões acerca da responsabilidade civil pelo uso de sistemas de inteligência artificial[8], violação de dados pessoais, dentre outros. Há também outras inclusões propostas, as quais já foram pacificadas na jurisprudência, mas que – se aprovadas – passarão a constar oficialmente do Código Civil, como, por exemplo, a possibilidade de reparação por dano à honra sofrido pela pessoa jurídica[9] diante da comprovação do fato lesivo. Além disso, a mudança proposta para o artigo 944 traz uma maior abrangência à indenização, incluindo-se a possibilidade de indenização pela “perda de uma chance” e a descrição exemplificativa dos bens jurídicos tutelados, dos quais constam “a integridade pessoal e a saúde psicofísica[10].

 

Embora o Código Civil vigente não esteja desatualizado – se comparado, por exemplo, ao Código Penal, que é de 1940, ou ao Código Tributário, de 1966 –, é fato que a sociedade mudou significativamente nos últimos 22 anos, de modo que há muitos temas, em especial os destacados acima, que necessitam de regulamentação, aperfeiçoamento e pacificação, mormente os mais “polêmicos” e aqueles que envolvem situações do cotidiano. Assim, ao menos à luz das alterações já propostas nos relatórios examinados, é possível afirmar que a atualização do Código Civil será capaz de preencher diversas lacunas até então verificadas e de se aproximar da sociedade civil atual e dos avanços tecnológicos, inclusive daqueles que tiveram maior destaque com a infeliz pandemia da COVID-19 (por exemplo: o reconhecimento e regulamentação de atos jurídicos e contratos firmados eletronicamente e a utilização dos documentos digitais como meio de prova). De certo afirmar, portanto, que as alterações propostas, cujas perspectivas são animadoras e esperadas, impactarão a sociedade civil, devendo ser acompanhadas de perto.

[1] Acesso em:

https://legis.senado.leg.br/comissoes/arquivos?ap=7935&codcol=2630

2 “Art. X. São direitos das pessoas no ambiente digital:

I – O reconhecimento de sua identidade e existência no ambiente digital;

II – A proteção de seus dados e informações pessoais, em consonância com a legislação de proteção de dados pessoais vigente;

III – A garantia dos direitos de personalidade, da dignidade, da honra, da privacidade e seu livre desenvolvimento; (…)”.

3 “§ 1º A relação jurídica digital é constituída quando:

I – Há um acordo de vontades manifestado de forma expressa ou tácita no ambiente digital;

III – Há um acordo de vontades manifestado de forma expressa ou tácita que envolve sujeito em ambiente analógico com máquina ou equipamento digital”;

4 “Art. X – A locação de coisas, celebrada por meio de aplicativo digital, é modalidade de contrato válida e eficaz, desde que atendidos os requisitos legais estabelecidos neste Código.

Parágrafo único: Para fins deste artigo, entende-se por aplicativo digital qualquer plataforma, software ou sistema eletrônico que permita a celebração, gestão e execução de contratos que tenham por objeto a intermediação do uso, gozo e fruição de coisa não fungível”.

5 “Art. 1.790-A. Há sucessão contratual quando, por contrato, alguém renuncia à sucessão de pessoa viva ou dispõe sobre a sua própria sucessão.

  • 1º. É válida a doação, com eficácia submetida ao termo morte.
  • 2º. A transmissão hereditária dos dados contidos em qualquer aplicação de internet, bem como das senhas e códigos de acesso, pode ser regulada em testamento ou, na omissão deste, nos contratos celebrados entre titulares e usuários e as respectivas plataformas.
  • 3º. A reconstrução de voz e imagem após a morte se submete à mesma proteção dos direitos morais de autor (…)”

6 “Art. 1.791-A. Os bens digitais do falecido de valor economicamente apreciável integram a sua herança.

  • 1º Compreende-se como bens digitais, o patrimônio intangível do falecido, abrangendo, dentre outros, senhas, dados financeiros, perfis de redes sociais, contas, arquivos, pontos em programas de recompensa, milhas aéreas e qualquer conteúdo de natureza econômica, armazenado ou acumulado em ambiente virtual, de titularidade do autor da herança”.

7 “Art. 1.798. Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão, bem como os filhos do autor da herança gerados a qualquer tempo por técnica de reprodução humana assistida, no termo e condições previstos nos parágrafos seguintes.

  • 1º. Somente é reconhecido direito sucessório aos filhos gerados após a abertura da sucessão, se nascidos no prazo de até 04 (quatro) anos a contar daquela data.
  • 2º. O direito à sucessão legítima dos filhos concebidos ou gerados por técnica de reprodução humana assistida, concluída após a morte, quer seja por meio do uso de gameta de pessoa falecida ou transferência embrionária em genitor supérstite ou, ainda, por meio de gestação por substituição, depende da autorização expressa do autor da herança, por instrumento público ou testamento”.

8A proposta de inclusão do inciso VII é no seguinte sentido:

“Art. 932. Responderão independentemente da existência de culpa:

(…) VII – os sujeitos que utilizem ou se beneficiem direta ou indiretamente, de sistemas de inteligência artificial de alto risco, conforme determinado por legislação específica, sem prejuízo da responsabilidade do fornecedor ou fabricante por serviços ou produtos defeituosos;”.

9 Súmula 227 do STJ: “A pessoa jurídica pode sofrer dano moral”.

[11]“Art. 944. A indenização compreende os efeitos da lesão a interesses concretamente merecedores de tutela, abrangendo danos emergentes, lucros cessantes e perda de uma chance. Inclui especialmente as consequências da violação da esfera moral e existencial da pessoa, sua integridade pessoal e saúde psicofísica.

Parágrafo único: A pessoa jurídica faz jus à reparação do dano à honra objetiva, diante da comprovação do fato lesivo à sua valoração social, bom nome, marca, credibilidade e reputação”.

Autor: Por: Nathalie Paloma Grecco Lettieri e Alice Simões Maia

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