Autor: Eduardo de Carvalho Becerra e Flávio Yarshell
03/04/23
A garantia mais basilar do conjunto de todas aquelas que decorrem diretamente do devido processo constitucional é o contraditório. Entre nós, é princípio insculpido no rol de direitos e garantias fundamentais (CF, art. 5º, LV). E sua relevância pressupõe a valorização da citação. Afinal, é exatamente por esse ato que se oportuniza o ingresso do réu, executado ou interessado no feito e, a partir daí, o exercício do contraditório por esse sujeito processual. Embora isso seja correto, o respeito ao contraditório não é o único valor que integra o processo. Dentre outros, o fator tempo também possui relevância, uma vez que diretamente associado à qualidade da tutela jurisdicional. E a dificuldade se origina da constatação de que a máxima segurança em matéria de citação – e a valorização do contraditório daí decorrente – pode provocar atrasos prejudiciais ao desenvolvimento do processo.
A tecnologia pode auxiliar na tentativa de encontrar um “ponto ótimo” nesse delicado equilíbrio. E, nesse contexto, para ilustrar, houve recente decisão, proferida por juízo do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), que autorizou a citação de réu estrangeiro por WhatsApp, na medida em que tentativas anteriores realizadas por oficial de justiça levantaram dúvidas sobre se ele estaria residindo no Brasil ou em território estrangeiro[1]. Naquele feito, o réu foi posteriormente localizado, de modo que a tentativa de citação por essa ferramenta restará, provavelmente, prejudicada. Mas essa recente iniciativa demonstra que o debate, sem dúvidas, é atual e, mais que isso, poderá motivar outros magistrados a adotarem semelhante postura.
Sem embargo da louvável intenção de promover eficiência à marcha processual considerada em tal decisão, a legislação é clara ao estabelecer, taxativamente, os modos de citação permitidos pelo ordenamento jurídico (CPC, art. 246). Após modificações introduzidas pela Lei 14.195/21, a citação por meio eletrônico, que já era, em tese, o modo preferencial de citação, ganhou novos contornos. Ela só se aperfeiçoa, contudo, se houver a expressa confirmação do destinatário (CPC, art. 246, §1º-A), sendo certo, ainda, que não são todas as pessoas as obrigadas a manter cadastro para citação por esse modo (CPC, art. 246, §1º).
Não há, portanto, no arcabouço legal, autorização para a realização de citação por WhatsApp (ou outras ferramentas congêneres). E esclareça-se: quando a lei relega a matéria de comunicação processual à regulamentação, assim o faz para definir apenas o procedimento operacional pela qual a citação eletrônica seria viabilizada. Ainda assim, a lei toma cautela ao definir todas as características básicas desse modo de citação (CPC, art. 246, caput), a fim de evitar, justamente, que um novo modo de citação seja criado a pretexto da atividade de regulamentação; o que, de volta ao ponto, descredencia a utilização do WhatsApp como uma ferramenta de citação.
Esse raciocínio de inviabilizar a criação de novos modos de citação pelo próprio intérprete casuisticamente não poderia ser superado nem pela ponderação de princípios, nem pela instrumentalidade das formas. Embora um modo “alternativo” de citação pudesse, em determinado caso, ser provavelmente adequado e necessário, seria difícil concluir pela sua proporcionalidade em sentido estrito, na medida em que a extensão dos prejuízos impostos ao citando não seria determinável. Sob o ângulo da instrumentalidade das formas, basta recordar que ela não autoriza a inserção de novas formas no processo, mas apenas o aproveitamento de determinado ato praticado segundo um modelo pré-existente, mas de forma defeituosa[2].
Sem embargo da reserva legal sobre o tema, cumpre analisar a aptidão, ou não, do potencial uso dessa ferramenta para propósitos citatórios. À parte o uso generalizado, é também preciso reconhecer que o WhatsApp é eficiente para a comunicação diária. Diante de seus custos baixos, instantaneidade e proteção de dados via criptografia, parece lícito afirmar que a comunicação por WhatsApp é muito mais eficiente que uma comunicação por correio. Analisando o fenômeno sob um prisma mais amplo, a realidade física parece, pouco a pouco, estar cedendo seu protagonismo à realidade digital, tendência que o avanço dos metaversos parece querer levar às últimas consequências. A questão passa a ser como o processo recebe tais inovações sem o comprometimento de sua segurança.
A maior dificuldade na utilização do WhatsApp, enquanto ferramenta de citação, parece estar relacionada a um déficit de segurança envolvido na forma como essa tecnologia, em si mesma, está estruturada. Para que se possa atribuir legitimidade ao ato citatório, é fundamental que o destinatário seja identificável, que o conteúdo da comunicação seja conhecido do juiz e que seja possível determinar se o citando teve, ou não, efetiva ciência do ato. No caso do WhatsApp, não é tarefa fácil identificar com precisão o destinatário, uma vez que, em tese, o requerente pode ter indicado qualquer número telefônico na petição inicial.
Essa indeterminação é relevante porque, como se está diante do momento inicial do processo, eventual vício na comunicação tenderia a não ser sanado no próprio processo – ao menos não na fase de conhecimento. Foi exatamente por causa dessa dificuldade (indeterminação do destinatário) que a citação por esse meio foi anulada pelo STJ no julgamento do HC 641.877/DF.
Sob outro ângulo, do ponto de vista da ciência do ato, essa checagem seria impossibilitada pela simples desativação da comprovação de leitura pelo requerido (opção disponível na plataforma WhatsApp) e inexistência de resposta à mensagem enviada pelo oficial de justiça. Nesse caso, seria muito difícil atribuir validade à citação – a qual possui, preponderantemente, natureza real, no sentido de garantir que houve a ciência do citando ao ato[3]. Então, não se sabe nem para quem se enviou, e nem se esse alguém, de fato, consultou a mensagem em sua íntegra. Utilizar uma ferramenta nessas bases e para realizar ato de primeira grandeza como o da citação não parece adequado, não ao menos sem antes que a plataforma sofresse adaptações que endereçassem essas contingências.
Seu uso para esse fim, contudo, pode ser admitido excepcionalmente, no âmbito consensual: se houver, por exemplo, prévio cadastramento de um número de telefone para essa finalidade. Nesse caso, a situação seria praticamente idêntica à sistemática atualmente existente em relação à indicação prévia de endereços eletrônicos para viabilizar citação por e-mail (CPC, art. 246, caput). De forma semelhante, se houver indicação de números de telefone para essa específica finalidade – citação por WhatsApp – no contexto de um negócio jurídico processual feito em contrato, salvo melhor juízo, nada haveria a macular a citação por esse meio.
Embora a tecnologia possa, e deva, ser utilizada no processo com vistas à adoção de novas soluções equilibradas em matéria de garantismo e instrumentalidade, no âmbito das citações, aspectos concernentes à própria tecnologia do WhatsApp dificultariam seu uso generalizado para fins citatórios. Contudo, havendo prévia ciência do citando quanto ao uso da plataforma, a qual se refletiria no prévio cadastramento do número de telefone em base de dados do Poder Judiciário ou em negócio jurídico processual feito com a contraparte, a utilização da ferramenta se mostraria adequada à finalidade citatória.
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Este artigo é uma versão resumida de um outro trabalho dos mesmos autores (“Citação por WhatsApp: Disciplina legal dos modos de citação e reflexões sobre o potencial uso dessa ferramenta no processo”) que analisa o tema em maior profundidade e com densidade acadêmica. Em determinados trechos, foram importadas textualmente as considerações originadas desse outro artigo, ainda pendente de publicação.
[1] Para maiores detalhes, confira-se o processo de autos nº 5012213-26.2022.8.24.0005, em trâmite perante a 3ª Vara Cível de Balneário Camboriú-SC.
[2] Por ele se dá o aproveitamento do ato, embora padeça de defeito que efetivamente o contamina, mas não causa dano a qualquer das partes nem ao ordenamento jurídico […] O princípio da finalidade significa o aproveitamento de todos os atos que, embora contagiados de algum vício, podem ser aproveitados, ficando sanada a falha, desde que hajam atingido o fim a que estão destinados” (ARAGÃO, Egas Dirceu Moniz de. Comentários ao código de processo civil, vol. II (arts. 154 a 269), Rio de Janeiro, Forense, 1974, p. 286).
[3] “No que tange ao conhecimento dos termos da demanda, o Código de Processo Civil concebe duas formas de citação: a citação real e a citação ficta. A diferença essencial entre ambas as figuras está em que, na primeira, é certa a ciência do réu quanto à propositura da ação, enquanto que na segunda incide mera ficção legal de conhecimento, satisfazendo-se com isso o ordenamento processual.” (MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel; ARENHART, Sérgio. Novo Curso de Processo Civil, vol. II. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 123).
Autor: Eduardo de Carvalho Becerra e Flávio Yarshell